Na última Sexta-Feira, no seu espaço de comentário na SIC-N, o Dr. Louçã dedicou o momento Zen a mostrar um vídeo no qual Aline Beuvink, deputada à Assembleia Municipal de Lisboa eleita pelo PPM, criticava a recusa dos deputados de extrema-esquerda em aprovarem um voto de saudação pela deliberação do Parlamento Europeu, no qual este equiparava o Comunismo ao Nazismo. Na sua intervenção, Beuvink, deputada municipal de origem ucraniana, dizia que houve fome e canibalismo na Ucrânia durante o Holodomor. No seu tom habitual de escárnio e ironia, Louçã afirmou então que “alguns sectores da direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas”, recebendo um risinho cúmplice do jornalista.
É lamentável, mas não surpreendente, que Louçã, um membro do Conselho de Estado, continue com a impunidade de sempre a espalhar mentiras. Qualquer pessoa que tenha tido a felicidade de viver para lá de Badajoz, o que manifestamente não aconteceu com o Dr. Louçã, sabe que, na Europa civilizada, os crimes contra a humanidade cometidos em nome da construção do Socialismo são hoje factos estabelecidos equiparados ao Nazismo. Infelizmente para todos nós, o Dr. Louçã nunca saiu da paróquia, fazendo toda a sua carreira política e académica ali na D. Carlos I, entre o ISEG e a Assembleia da República.
O Dr. Louçã fala habitualmente das mentiras e da realidade paralela na qual vivem Trump ou Bolsonaro. É pena que nunca tenha parado para se olhar ao espelho. Uma vez que este tema é demasiado sério, decidi escrever este artigo no qual vou tentar elencar alguns factos básicos sobre o Holodomor. Tal como o Dr. Louçã, não sou especialista no tema. Portanto, troquei emails com três colegas nos Estados Unidos e na Europa, especialistas em genocídios na Europa de Leste no período entre guerras, que me indicaram algumas referências bibliográficas básicas.
Comecemos por um breve enquadramento. Ao contrário das profecias de Marx, o primeiro país do mundo onde a revolução chegou era uma nação de camponeses, com uma classe proletária mínima. Havia, pois, necessidade de industrializar e lançar as sementes para que a ditadura do proletariado lançasse frutos. Num ensaio na New York Review of Books, Sherhii Plohky, director do Harvard Ukranian Research Institute, explica como Estaline e Vyacheslav Molotovassinaram um decreto, em 1932, que visava utilizar cereais produzidos na Ucrânia e no Cáucaso como meios de troca comerciais com países estrangeiros para compra de maquinaria indispensável à industrialização da União Soviética. Os solos destas zonas são altamente férteis e rentáveis, daí a sua escolha pelo pai dos povos como centro cerealífero da União Soviética. À boa maneira Comunista, o decreto continha, naturalmente, um conjunto de provisões sobre o que deveria acontecer aos camaradas Ucranianos caso não conseguissem cumprir a quota de produção: prisão e execução sumária. No entanto, e ainda segundo o mesmo decreto, Estaline procurava ainda a “sovietização” da Ucrânia: de forma breve, a eliminação das elites políticas e económicas de origem Ucraniana e a sua substituição por elites Russas, garantindo assim a fidelidade política.
Os camponeses ucranianos resistiram em força à coletivização da economia, não conseguindo cumprir a quota de produção imposta centralmente. Estaline, pensando que os camponeses estavam a esconder a sua produção, respondeu enviando tropas Soviéticas, as quais tinham ordens para fiscalizar todos os locais de produção e simplesmente obrigar, à força se necessário, os camponeses a entregar toda a sua produção para entregar ao Estado. Nada sobrava, então, para os camponeses comerem. Começava então o que a literatura descreve como a Grande Fome Ucraniana.
Robert Conquest, Professor de História Russa em Stanford, escreveu em 1986 o livro The Harvest of Sorrow: Social Colectivization and the Terror-Famine, na Oxford University Press. Neste livro, uma das maiores referências académicas sobre o tema, Conquest estima que o total de mortos da Grande Fome imposta por Estaline rondará os 3.5 milhões, com altíssima probabilidade de ter chegado aos 5 milhões. Para se colocar isto em perspectiva, o número de Judeus mortos no Holocausto é de 6 milhões.
Para além do tremendo número de mortos, ao contrário do que o Dr. Louçã afirma, o genocídio provocado pela fome, envolveu práticas canibais, de onde viria a surgir o ‘mito’ de que os comunistas comem criancinhas. Isto é, obrigados a passar fome por Estaline, os ucranianos viraram-se para o canibalismo como forma de sobreviver. Para sustentar esta afirmação, vou citar, em Inglês, como na fonte, para não ser acusado de ter enviesado a tradução, um conjunto de trabalhos académicos da vastíssima literatura sobre o tema.
No seu livro The Years of Hunger: Soviet Agriculture, 1931–1933, R. W. Davies e Stephen G. Wheatcroft afirmam que “there were many cases of cannibalism by peasants desperate for food: both cannibalism in the strict sense – that is, murder for food (known as lyudoedstvo – eating people) and corpse-eating (trupoedstvo).” (p. 421). Nesse tempo, “the Kiev GPU was receiving ten or more daily reports of cannibalism: in at least one district ‘in the majority of occurrences is even becoming “normal” (p. 422). De acordo com relatos constantes dos arquivos ucranianos, abertos já depois da queda da União Soviética, os próprios pais matavam um dos filhos para se alimentarem a si e aos restantes filhos, “In a typical case: ‘A mother or father kill a child, the meat is used for food, and their own children are fed with it. Many prepare stocks [of human flesh] and salt the meat in barrels’” (p. 422).
A existência de canibalismo era reconhecida pelas próprias autoridades ucranianas, que chegaram a abrir processos judiciais contra os cidadãos que praticavam tais actos. O Harriman Institute da Universidade de Columbia, um centro de investigação dedicado à Europa de Leste e Rússia, num número especial de 2007 do Harriman Review, dedicado aos 75 anos da Grande Fome na Ucrânia, afirma que foram instaurados mais de 2500 processos por canibalismo no contexto da Grande Fome. Desses, e cito, “the documents for 1,000 of these cases have survived. They include photographs of the material evidence and of those who committed these crimes” (p. 30). O investigador termina dizendo que, apesar de disponíveis ao público, na sua opinião “society is still not ready today to accept these grizzly photos and textual records. It is a matter for the future” (p. 30).
Para último deixo uma citação de um livro de Timothy Snyder, Historiador de Yale, que escreveu Bloodlands – Europe Between Hitler and Stalin. Nesse livro, Snyder escreve que “survival was a moral as well as a physical struggle. A woman doctor wrote to a friend in June 1933 that she had not yet become a cannibal, but was ‘not sure that I shall not be one by the time my letter reaches you’. The good people died first. Those who refused to steal or to prostitute themselves died. Those who gave food to others died. Those who refused to eat corpses died. Those who refused to kill their fellow man died. Parents who resisted cannibalism died before their children did.” (p. 50).
Em reacção ao livro de Timothy Snyder, Ta-Nehisi Coates, uma das vozes mais activas nos Estados Unidos a denunciar o racismo sistémico da sociedade Norte-Americana, escreveu, em 2014, na Atlantic, um artigo no qual diz que, apesar de ter um estômago forte a ler sobre o Mal, não conseguiu ler o livro até ao fim.
O Dr. Louçã prefere ser um negacionista do Holodomor, um dos maiores genocídios da História. Está no seu direito. A estupidez, a mentira e a conivência com o Mal ainda não pagam impostos. A SIC-N e o Expresso também estão no seu direito de lhe dar visibilidade mediática. Charlatões é o que mais há para aqueles lados. Quem não se lembra de Artur Baptista da Silva? Todavia, que um membro do Conselho de Estado de Portugal brinque de forma leviana em prime-time com um genocídio parece-me, no mínimo, de gosto duvidoso.