Para perceber o sucesso dos novos partidos é imprescindível analisar o ecossistema mediático em que estes potencialmente medram. Apesar do sucesso das redes sociais, como canais de comunicação que dispensam os mediadores tradicionais (jornais e televisões), o acesso aos media continua a ser um ponto vital para o sucesso eleitoral, particularmente num país como Portugal em que a maioria dos votantes continua a informar-se através de meios tradicionais.

No fundamental, o sistema partidário português mantém-se intacto desde que, no início de Maio de 1974, os militares encomendaram (literalmente!) um Partido Popular de centro-direita e um Partido Democrata Cristão para compor o ramalhete dos previamente existentes Partido Comunista e Partido Socialista. Ficava, assim, composto um sistema partidário igual “à Europa”, que queríamos emular. O aparecimento do Bloco de Esquerda, em 1999, resultou de contingências políticas e sociais, nomeadamente a hemorragia no PCP, com a saída crescente de quadros críticos à evolução pós-1989, juntamente com a liderança conservadora e católica do Partido Socialista, que minou as propostas pós-materialistas da JS. A campanha do referendo do aborto, em 1998, foi o rastilho final que ajudou à fundação do partido.

O cartel partidário convive alegremente com o cartel da comunicação social. Ambos necessitam um do outro. Os partidos necessitam da comunicação social enquanto instrumento para a criação e manutenção da chamada “narrativa do sucesso nacional”, especialmente quando a esquerda está no poder. A comunicação nacional, em geral de (muito) má qualidade e eternamente de mão estendida, precisa do Estado para sobreviver economicamente. Vejamos três exemplos recentes que nos mostram a relação pouco saudável – e isto é um eufemismo – entre o cartel partidário e a comunicação social.

Há cerca de um mês, Ricardo Costa, meio-irmão do primeiro-ministro, comentador político e director da Sic Notícias (tudo isto, claro, sem qualquer conflito de interesse, isso, como todos sabemos, só acontece no país de Trump) tomou a decisão – correcta – de terminar com os programas de futebol no seu canal. Justificou a sua decisão, afirmando que não tinha sentido a existência de programas de futebol nos quais comentadores encartados dos clubes vão debitar a cartilha previamente combinada com os departmentos de comunicação dos clubes. Terá, pois, sentido, manter programas de política nos quais comentadores encartados dos partidos vão debitar a cartilha previamente combinada com os departamentos de comunicação dos partidos?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Aparentemente, sim. Os canais de televisão e os jornais estão enxameados de políticos, ex-políticos e aspirantes a políticos. Cerca de 80 por cento do comentário é feito por pessoas com interesse no objecto que está a ser analisado. Isto não é normal, não pode ser normal, num país civilizado. Veja-se o caso recente, conhecido esta semana, no qual ficámos a saber que Ana Catarina Mendes será a substituta de Jorge Coelho na Circulatura do Quadrado. Diferentemente de Pacheco Pereira, Ana Catarina Mendes não tem quaisquer pergaminhos intelectuais. Para além disso, ao contrário de Jorge Coelho e Lobo Xavier, prepara-se para assumir um papel de comentário, enquanto mantém funções de alto nível na política activa. Desde o início dos anos 90 que não tem qualquer actividade profissional fora do partido. Não passa, pois, de uma indicação de António Costa para o programa, o qual conta com a sua fidelidade total para passar a mensagem (e, quem sabe, para algo mais no futuro do partido…). Em Portugal, o comentário político é a continuação da política por outros meios. Triste.

A pandemia deu a desculpa perfeita para levar a dependência total da comunicação social do Estado até um outro nível. O Governo decidiu dar subsídios a fundo perdido, utilizando uma “fórmula de cálculo”, no mínimo, bizarra. Adiante. Alguém acredita, verdadeiramente, que um jornal que está ligado à máquina pelo financiamento público, dependente do Governo, pode manter a fiscalização independente dos poderes públicos? A proposta que Miguel Poiares Maduro avançou parece-me bastante mais interessante. Por que não dar a cada Português um voucher para gastar em assinaturas de jornais? Deste modo, seriam os consumidores a decidir a possibilidade de penalizar ou gratificar os jornais que estão a fazer um bom trabalho. Claro que, assim, seria mais difícil premiar os grupos jornalísticos amigos e que ajudam a levar a narrativa para a frente. Correríamos o risco de os consumidores gostarem mais de jornais que são, digamos, menos amigos do poder. No entanto, seria bastante mais saudável do ponto de vista democrático.

Por último, o Governo encomendou a uma equipa de académicos do ISCTE um estudo sobre o discurso de ódio nas redes sociais. Sabemos pouco, demasiado pouco, sobre o dito estudo para estarmos sossegados. Notem que o meu desassossego não é com o estudo em si, ou com os académicos que o vão realizar. A minha preocupação principal é com o destino a dar aos dados que serão gerados pelo dito estudo. Apesar de termos uma Comissão Nacional de Protecção de Dados lesta a tomar decisões, no mínimo, bizarras, o dito estudo não mereceu qualquer reparo público. Quem ficará responsável pela armazenagem e manutenção dos dados? Serão anonimizados? Que garantias temos que o Governo não utilizará os meta-dados recolhidos na busca de “discurso de ódio” para efeitos de propaganda ou de campanha eleitoral? A utilização dos meta-dados é uma ferramenta poderosa para perceber padrões de comportamento nas redes e fazer microtargeting de votantes, algo que tem sido discutido à saciedade noutros países. Parece-me estranho que o Governo encomende um trabalho desta natureza e ninguém faça estas perguntas. Isto só mostra o quão anémica está a democracia portuguesa.

Perguntar-me-ão o que é que tudo isto tem a ver com os novos partidos? O cartel partidário e mediático vive numa câmara de eco, impedindo a entrada de novos actores que representem novas clivagens na sociedade portuguesa. Na ausência de caminhos de recrutamento mediático e político que abram as portas a moderados, resta o discurso populista, xenófobo e alavancado em comentário futebolístico sobre o Benfica. Podemos ter a sorte de ser um epifenómeno e, dentro de uns anos, vermos emergir um partido moderado que represente a sociedade portuguesa de forma consistente e saudável. Podemos ter o azar do cartel manter a porta encerrada de tal modo, que apenas restará a entrada por caminhos ínvios. Os próximos anos mostrar-nos-ão o que os poderes instalados pretendem fazer.

Livro da semana

No início da pandemia, foi finalmente editado em Portugal o livro de Philippe Besson Deixa-te de Mentiras (Lisboa, Sextante, 2020). Uma obra de difícil classificação, algures na fronteira entre a autoficção e as memórias. Definitivamente, literatura erótica gay. Passagens de sexo explícito entre dois rapazes na descoberta da sua homossexualidade na França rural e conservadora dos anos 80. Apesar de não ter sido vincado por algumas recensões internacionais (por cá, o lançamento passou despercebido), o interesse maior no livro consiste, em minha opinião, no impacto da classe social na sexualidade. De certa maneira, fez-me lembrar o primeiro livro de Édouard Louis Acabar com Eddy Bellegueule, de 2015, no qual este relata a opressão que o pai, operário desempregado e apoiante da Frente Nacional, exerce sobre ele. O livro de Besson permite-nos ver os dois lados do espelho. Por um lado, Thomas, filho de um agricultor e de uma emigrante espanhola, sublima a sua condição homossexual, acabando por ter um filho, casar e cometer suicídio. Por outro lado, o autor, filho do director do liceu local, um meio pequeno burguês com educação, consegue ir para Paris estudar e tornar-se escritor. Deixa-te de Mentiras é o primeiro volume de um tríptico que, com uma prosa escorreita e sem os proselitismos típicos de uma certa literatura, relata muito bem uma certa época.