Na verdade vem nos livros, não tínhamos que nos admirar. Boccaccio já nos tinha avisado que quando a peste chega os homens se evitam, os parentes se distanciam, o irmão é esquecido por irmão, muitas vezes o marido pela mulher, que até houve pais e mães que abandonaram os filhos à sua sorte. Sim, eu sei, foi na Peste Negra, quando quase um terço dos europeus morreram, quando a medicina era impotente, quando ainda estávamos na Idade Média.

Mas quando leio os relatos do que se passou no lar de Reguengos, quando verifico o abandono a que aqueles velhos estavam entregues, quando sei que a inspecção da Ordem dos Médicos verificou que muitos doentes morreram de desidratação porque não lhes davam água – sim: não bebiam água suficiente – e que quem lá foi encontrou lixo por todo o lado e até urina seca no chão, quando sobretudo constato que a morte de 18 seres humanos em Reguengos sobressaltou menos o país do que a morte dos animais em Santo Tirso, sei que não estamos tão longe como pensamos das personagens do Decameron.

Não é só a pobreza – que há muita e muito antiga –, e também não é só o medo do vírus – que toma amiúde proporções irracionais. É tudo isso e é também aquilo a que um dia Salgueiro Maia chamou “o estado a que isto chegou”. E o “estado a que isto chegou” é que o país, como um todo, no fundo não é assim tão diferente do que Tânia Pereirinha encontrou naquela terra do interior alentejano: “Há um clima de receio e de medo em Reguengos, é um ambiente quase feudal, em que o presidente da Câmara controla tudo e as pessoas não querem falar. (…) À boca pequena há um julgamento público, mas ninguém quer dar a cara e falar. Toda a gente tem alguém que trabalha na Câmara, na Junta de Freguesia, na Misericórdia ou na Fundação. Têm medo de perder o emprego”.

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