Não estamos habituados a receber dinheiro do Estado, estamos habituados a pagar e a apoiar bancos. E os clientes do Novo Banco devem ainda estar mais preocupados e avisar que este dinheiro não é para eles. Quando Ricardo Araújo Pereira nos contou esta história no domingo, na SIC, que aqui se relata obviamente sem a graça que teve, acabou por nos colocar perante as nossas incongruências. Ajudar bancos merece toda a nossa condenação, enviar para a nossa conta, mesmo que apena 125 euros e só para quem tenha recebido em 2021 menos de 37.800 euros, é uma festa. Até os pensionistas estão felizes, mesmo sabendo, se formos rigorosos, que nada tiveram a mais do que deviam ter se a lei da actualização das pensões se aplicasse em 2023.

“Já recebeste o dinheiro do Costa?” É o novo cumprimento deste Outono. Sem que ninguém se lembre que é dinheiro dos nossos impostos e não do primeiro-ministro, o mesmo dinheiro que nos irrita quando é para ajudar os bancos ou mesmo a TAP.

O que se está a passar em Portugal não é muito diferente daquilo que também vemos no resto do mundo, nos países que nos habituámos a ver como mais pró-mercado, como o Reino Unido, ou até praticamente sem Estado Social, como os EUA, até aos mais intervencionistas europeus do continente. Estamos definitivamente na era do dinheiro do Estado para todos os que estão em dificuldades, chegando agora às famílias a mão com dinheiro que só estávamos habituados a ver ir até aos bancos ou a grandes empresas, tudo demasiado grande para falir. Também ficámos demasiado grandes para falir.

A The Economist neste inspirador artigo, “The world enters a new era: bail-outs for everyone, identifica a origem desta nova era na crise financeira, quando os países salvaram os seus bancos. Seguiu-se a pandemia e os estados salvaram a capacidade produtiva. Chegou a crise com inflação e o hábito estava instalado. Portugal só se distingue por ser menos generoso e jogar com ilusões, como acontece nas pensões.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O ex-ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble é uma voz (pelo menos parcialmente) isolada e mesmo do passado, quando critica quem espera por soluções do Estado. Diz aos alemães para “não serem choramingas e, face à crise na energia, que “vistam duas camisolas e acendam velas”. Não muito diferente do que se ouviu na Alemanha, na década de 70, na altura do primeiro choque petrolífero, em 1973, que provocou uma crise semelhante a esta. Recorda a The Economist que Willy Brandt, o chanceler da, na altura, Alemanha Ocidental, disse: “todos temos de nos vestir um pouco mais este inverno”. A orientação, naquela crise parecida com esta, era reduzir o consumo e não ajudar quem estava a ser afectado pela crise.

O próprio António Costa também houve um momento em que considerou todos estes pedidos de apoio um pouco excessivos. Foi num contexto diferente, por causa dos incêndios, ainda antes desta generosidade dos 125 euros, e por causa das queixas de mudança de um evento. “A ideia de que o Estado tem de segurar qualquer eventualidade da vida para pessoas e empresas não existe. Não é o segurador universal”, disse na altura o primeiro-ministro, numa declaração que, por incrível que pareça, se aproxima da de Wolfgang Schäuble. Neste momento, face ao contentamento generalizado, não deve dizer o mesmo.

De facto o Estado está a ser muito mais do que um “segurador universal”. Está a nacionalizar as perdas, quando na era da prosperidade se privatizaram os ganhos.

Um dos exemplos desta assimetria – em que o Estado, que somos nós contribuintes, assume as perdas – é o crédito hipotecário. A insistência em considerar que é preciso ajudar quem tem crédito à habitação parte do esquecimento de que os seus detentores beneficiaram de taxas de juro historicamente baixas. Haverá apoios, como o Governo já tem dito, mas mínimos, face à dimensão do custo que seria ajudar quem tem casa própria com empréstimo do banco. Aqui já se detecta que a ajuda do Estado tem limites.

Nesta crise não nos queremos sacrificar. Na energia, talvez nós não, portugueses, que passamos ainda muito frio nas nossas casas e temos uma das mais elevadas pobreza energética da União Europeia, mas nos países ricos, todos querem viver com antes, no nosso imaginário a andarem de t-shirt em casa, no inverno.

Mas está criada a ilusão de que o Estado vai ser capaz de nos proteger de uma crise com inflação, em que inevitavelmente vamos perder poder de compra, o que significa ficar mais pobres. Não vai ser possível e é difícil antecipar os efeitos que isso terá.

Em Portugal, o Governo aproveitou os ganhos que lhe caíram do céu, por via dos efeitos da inflação nos impostos, para distribuir esse excesso e ainda assim atingir o défice público de 1,9%. Desenhou até um pacote de apoios que não respeitou a regra de ajudar apenas os que mais são afectados pela crise, as famílias e pensionistas de rendimentos mais baixos. Se no caso das famílias ainda se pode perceber o argumento, especialmente do ministro das Finanças, de que é preciso começar a apoiar a classe média trabalhadora, no caso dos pensionistas é mais difícil de perceber.

Nas pensões, o Governo aproveitou a situação para poupar cerca de mil milhões de euros à segurança social, retirando-os aos rendimentos futuros dos pensionistas. Se nas pensões mais elevadas isso se pode compreender, nas mais baixas é especialmente injusto e traduz-se, se não agora, mais tarde, em perdas de poder de compra.

A inflação, por via da pressão sobre os salários no mercado de trabalho e da subida do salário mínimo, pode acabar por ter um efeito redistributivo mais importante do que os apoios do Governo. Como se pode ver neste trabalho do Banco de Portugal, são os reformados aqueles que registaram maior perda de poder de compra, situação que não se perspetiva que se corrija com o “não apoio”, deste esquema de antecipar metade do aumento do próximo ano.

Fernando Medina, mesmo com a margem orçamental com que parte para 2023, não pode ter a certeza de ter dinheiro disponível para voltar a anunciar apoios no próximo ano. Este novo Estado, mais generoso, quase segurador universal, tem um limite, como se percebe já no caso do credito à habitação.

Assim como os excessos de liberalismo dos anos 90 e seguintes nos conduzirem à crise financeira de 2007, a partir da qual, e num efeito de pêndulo, estamos a caminhar para este Estado quase segurador universal, também este excesso nos pode sair caro. Mas por enquanto a maioria dos portugueses está feliz com o dinheiro que está a sair dos cofres do Estado. Como disse Ricardo Araújo Pereira, desta vez não é para os bancos.