Teve lugar na semana passada, como de costume no Estoril, mais uma das habituais reuniões anuais da norte-americana Liberty Fund entre nós. O tema geral foi “Liberty and the Authoritarian and Totalitarian Challenges to the Liberal World Order”.

Como é timbre das conferências Liberty Fund, tínhamos cerca de 400 páginas A4 de leituras, criteriosamente distribuídas pelas seis sessões dos dois dias. A variedade de pontos de vista era também, como sempre, a característica marcante — a ponto de incluir um artigo, de um tal Eric Li, apresentando a China como defensora do comércio livre e até da “Rule of Law”. Como também é timbre das conferências Liberty Fund, não houve, nem podia haver “conclusões”. A ideia é conversar e cruzar argumentos, abrir caminhos, não fechar conclusões.

Pela minha parte, gostei sobretudo dos textos de Ayann Hirsi Ali sobre a importância de preservar os valores do Ocidente, bem como de seu marido Niall Ferguson sobre o declínio e queda do ensino da História nas Universidades americanas. Os extratos da novela “Submissão” de Michel Houellebecq produziram também grande impacto, gerando vivo debate sobre a potencial rendição da cultura europeia e ocidental perante o fundamentalismo islâmico (ou também, já agora, perante o comunismo chinês).

Ainda pela minha parte, apreciei também e talvez sobretudo os extractos do livro “World Order” de Henry Kissinger (Penguin, 2014). Pareceu-me refrescante a ênfase do autor sobre o “excepcionalismo americano”, que sempre foi posto em causa pelos inimigos do Ocidente — e por vezes também, pateticamente, por alguns dos seus alegados defensores:

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“Quando os Estados Unidos começaram a assumir a liderança internacional, acrescentaram uma nova dimensão à busca da ordem internacional. Uma nação fundada explicitamente na ideia de governo livre e representativo, ela identificou a sua própria ascensão com a difusão da liberdade e da democracia, e creditou estas forças com a capacidade de promover uma paz justa e duradoura que até então tinha escapado ao mundo” (p. 361).

Kissinger recorda a seguir que este impulso democrático dos EUA foi depois sabiamente temperado com a tradição europeia do equilíbrio de poderes — herdado do Tratado de Vestfália de 1648, que pôs termo à chamada Guerra dos Trinta Anos. Mas o impulso democrático americano permaneceu como elemento distintivo da aliança euro-atlântica até aos nossos dias:

“A dominante visão americana considera as pessoas como inerentemente razoáveis e inclinadas para compromissos pacíficos, bom senso e acordos leais; a difusão da democracia era por isso o objectivo global da ordem internacional. Mercados livres iriam elevar os indivíduos, enriquecer as sociedades, e substituir as rivalidades internacionais pela interdependência económica. Nesta perspectiva, a Guerra Fria fora causada pelas aberrações do comunismo; mais tarde ou mais cedo a União Soviética deixaria de ser comunista e voltaria ao concerto das nações” (p.362).

Como recordei aqui na semana passada, foi esta visão liberal e democrática que levou Ronald Reagan a apelar publicamente ao derrube do Muro de Berlim em 1987. Talvez não por acaso, o Muro caiu a 9 de Novembro de 1989.

Kissinger sublinha sempre que esta visão inspiradora deve ser combinada com a prudência europeia do equilíbrio de poderes. Mas insiste que “a afirmação da natureza excepcional americana deve ser mantida. […] A América deve manter o seu sentido de direcção” (p. 373).

A reunião da Liberty Fund decorreu apropriadamente no Hotel Palácio do Estoril, o hotel dos Aliados anglo-americanos durante a II Guerra, bem como o berço do James Bond de Ian Fleming. Todo o tipo de medidas de segurança sanitária foram exemplarmente observadas, com testes diários, uso de máscaras e distanciamento social — além da proverbial pontualidade ao minuto da Liberty Fund. Também muito apropriadamente, os trabalhos terminaram com o jantar da noite de 3 de Julho, de forma a que todos, sobretudo os norte-americanos, pudessem observar o feriado de 4 de Julho, “Independence Day”.

A este propósito, pode valer a pena recordar a frase histórica que, na Declaração de Independência de 4 de Julho de 1776, fundou a “primeira nova nação” (como lhe chamou o nosso saudoso amigo Seymour Martin Lipset):

“We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.”

Talvez os recentes debates lusitanos — basicamente sobre coisa nenhuma, e que a propósito de coisa nenhuma declaram esgotada a democracia — pudessem aprender com o fundador impulso democrático americano. E talvez não fosse pior tentar mantê-lo entre nós.