Sexta-feira, 15 de Julho, na RTP 3, no dia seguinte ao atentado de Nice, José Manuel Pureza, deputado do Bloco de Esquerda, recomendava prudência na atribuição de propósitos islamistas ao autor da carnificina. E adivinhava-se no que dizia a necessidade de mantermos uma posição de recuo, de distância, na nossa reacção à monstruosidade. Não se tratava, bem entendido, de aplaudir o feito, mas antes de reagir antecipadamente a qualquer tentação de “deriva securitária” (não me lembro, confesso, se José Manuel Pureza utilizou a expressão, mas ela estava no ar). O Bloco, de resto, no Esquerda.net, avisava da urgência em “contrapor à brutalidade a luta pela liberdade e pela igualdade”. Uma luta que obviamente se opõe a qualquer “securitarismo”.

Os Verdes também se manifestaram chocados, mas avisaram que nada “pode justificar o extremar de medidas que atentem contras as liberdades e garantias dos cidadãos”, aconselhando, além disso, que se proceda a uma reflexão sobre “as causas que levam a estas acções”. Contamos todos com Heloísa Apolónia para a tal “reflexão”. O PCP, é claro, igualmente condenou, mas avisando que o terrorismo “serve sempre as estratégias e os interesses mais reaccionários” e que a “instrumentalização de naturais e genuínos sentimentos de indignação” deve ser evitada. “Islamismo” é aqui uma palavra tabu. E é impensável conceber a existência de um princípio de acção autónomo pelas bandas dos terroristas. Apesar de tudo, são árabes ou coisa assim: iam lá os inocentes perceber o que estavam a fazer? Em tempos, chamei a isto “racismo altruísta”, e não vejo razão nenhuma para dever alterar a expressão. O “outro” é por definição inocente, já que não tem em si nenhuma capacidade de iniciar por si uma série de acções. Há apenas reacção, e reacção a actos exclusivamente nossos.

Esta posição, que certas franjas do PS sem dúvida partilham, não me surpreendeu nada. Desde o 11 de Setembro de 2001 que a ouço expressa em termos muito semelhantes, e certamente que muita gente que não li nem ouvi a formulou nos dias consecutivos ao atentado do camião em Nice (a propósito: um método de combate aos infiéis explicitamente aconselhado pelo Estado Islâmico). Ela merece, no entanto, dois comentários. Primeiro. O cepticismo é sem dúvida uma atitude do espírito que se recomenda em geral. Surpreende, no entanto, observá-la em gente que não exorbita propriamente dela, nem de qualquer compulsão a duvidar, na sua intervenção política, marcada antes pela taxatividade nos mais variados domínios. Segundo. Nada a objectar, como é óbvio, a que se oponha à brutalidade “a luta pela liberdade e pela igualdade”. É apenas curioso que se omita que, face à brutalidade, a defesa da liberdade (e, já agora, da igualdade e da fraternidade, se se quiser) passa pelo combate à tal brutalidade e pela repressão desta. Voltarei a estes dois comentários no fim.

Fez o acaso que, no próprio dia do atentado de Nice, tivesse começado a ler aquela que é geralmente reconhecido como a mais detalhada análise da história, da estrutura e da ideologia do Estado Islâmico, o livro de Michael Weiss e Hassan Hassan, Isis. Inside the Army of Terror, publicado em 2015 e reeditado em 2016. A coincidência não é, infelizmente, particularmente misteriosa, dada a frequência com que os atentados do Estado Islâmico se sucedem. Em todo o caso, o livro de Hassan e Weiss (que estará em Portugal a 11 de Setembro próximo, no Festival Literário de Cascais) ilumina grandemente o padrão que preside aos atentados do Estado Islâmico, como o de Nice.

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Começa com a descrição das actividades daquele que é visto como o precursor da ideologia e da prática do Estado Islâmico, o jordano Abu Musab al-Zarqawi. Um puro criminoso de delito comum, contrabandista de álcool, proxeneta, drogado e violador de jovens (de ambos os sexos), até se ter transformado em criminoso religioso, com apetite notório pela filmagem de degolações. Rompendo com a Al-Qaeda e Bin Laden, al-Zarqawi criou o trilho que conduziria a Abu Bakr al-Baghdadi e ao Estado Islâmico tal como hoje o conhecemos. A partir daí, Weiss e Hassan dedicam-se à descrição da rede de relações que permitiram ao Estado Islâmico prosperar (particularmente interessantes são os apoios recebidos da Turquia do simpático Erdogan) e dos seus vários sucessos e insucessos militares.

Dois aspectos são singularmente esclarecedores nesta história, embora não constituam de modo algum as partes mais originais do livro. O primeiro é como, naquelas cabeças, todos os tempos e todos os espaços se confundem, algo que era já patente na Al-Qaeda, e, antes, no mais eminente teórico da Irmandade Muçulmana, Sayyed Qutb. Vivemos, aparentemente, no tempo das Cruzadas. Não há, propriamente falando, história: há sim a repetição de uma oposição imemorial e fundadora entre crentes e infiéis. Uma repetição que se repetirá, perfeita e absoluta, até à derradeira vitória do Islão e à destruição definitiva dos infiéis.

O segundo é a formidável regressão e a grotesca infantilização do pensamento. Uma e outra coisa encontram-se ligadas entre si, é claro. Por mais equívoca que seja a ideia de progresso, alguns dos seus elementos constitutivos permitem-nos adquirir a capacidade para nos distanciarmos de nós mesmos e para nos afastarmos da paixão perversa de uma restituição integral do passado na sociedade contemporânea. Viver como adulto implica saber isso. Nada assim com aquela gente. O passado deve ser revivido integralmente no presente: é o mesmo tempo. E o espaço, também ele, deve sofrer a mesma abolição de diferenças. A geografia torna-se irrelevante, notam Weiss e Hassan. O espaço é só um: o do Estado Islâmico. O Islão passa a ser a única referência societária. E também aqui o processo de regressão, de infantilização, é notório. Viver como adulto significa, entre outras coisas, respeitar os lugares dos outros como espaços distintos dos nossos. Aquilo que Kant chamava “hospitalidade universal”, um ideal cosmopolítico, supõe exactamente isso. Devemos poder circular pela terra inteira, mas isso na condição de sabermos respeitar a especificidade dos lugares, as diferenças que os singularizam.

A infantilidade grotesca do Estado Islâmico encontra-se exibida na perfeição na descrição que Hassan e Weiss fazem do ataque ao Bataclan, em Paris, a 13 de Novembro de 2015. Um sobrevivente notou como os terroristas se divertiam: riam-se enquanto matavam as pessoas. Um passo é particularmente ilustrativo. Quando a polícia, pelas dez da noite, entrou na sala de espectáculos, alvejou um dos terroristas, Samy Amimour. “Ele caiu ao chão, depois levantou a cabeça, um instante antes de activar o seu cinto suicida. A sua cabeça e uma das pernas foram projectadas para o palco e pedaços da sua carne na cabeça de um espectador. Os seus cúmplices, Ismail Mostefai e Foued Mohamed Aggad, acharam a coisa hilariante. «Fê-los rir», contou o espectador ao Le Monde. «Disse-me a mim mesmo que eram atrasados mentais»”.

Aconteceu-me já ler vários livros sobre organizações terroristas islâmicas: Al-Qaeda, Hamas, Hezbollah, etc. Por estrita obrigação e, por mais bem feitos que fossem, e este é muito bem feito, sem prazer algum. Por uma razão simples. Os personagens que ocupam a boca de cena são invariavelmente destituídos de qualquer interesse ou mistério humano. São, como notou o sobrevivente do Bataclan, atrasados mentais. Atrasados mentais criminosos, não crianças, e atrasados mentais por um processo culturalmente induzido e passível de ser descrito com um certo rigor. Uma criação social – embora uma monstruosa criação social. O principal interesse nestas leituras é o de nos ajudarem a perceber a monstruosidade da cultura que os engendra, isto é, o buraco negro do islamismo contemporâneo, resultado de uma espécie de colapso gravitacional de uma antiga civilização, colapso que Bernard Lewis estudou, livro a livro, em detalhe. Cultura que, no caso do Estado Islâmico, como notam Weiss e Hassan, inspira mesmo aos noviços o sentimento de contacto com um profundo “intelectualismo” (expressão de um aderente referida no livro).

Não quero crer que esta nossa esquerda se sinta particularmente atraída por tão fascinante “intelectualismo” de atrasados mentais criminosos. Tem, apesar de tudo, “intelectualismos” próprios, que, por frustes que sejam, possuem um grau de sofisticação superior. Mas o seu cepticismo de princípio, muito postiço, e parcialmente resultante desses tais “intelectualismos” próprios, serve-lhe de antecâmara para contextualizações sortidas. A isto convém responder que tal atitude, nestes casos, representa um obsceno desrespeito pelas vítimas, um desrespeito que prolonga, à sua maneira, a barbárie e a idiotia dos assassinos. É o islamismo – a doutrina e a prática do atraso mental convertido em ideologia criminosa – que é responsável pelo massacre. O islamismo contém em si um princípio de actividade: não é pura reacção resultante da actividade que define a nossa própria existência. Omitir isto é, literalmente, omitir tudo.

Em segundo lugar, declarar que se deve opor à brutalidade (“brutalidade” é, de resto, obviamente pouco) “a luta pela liberdade e pela igualdade” é, sem mais, uma abstracção irresponsável, que quase gramaticalmente parece absurda. O que se deve opor ao terrorismo islâmico, com vista à defesa da liberdade, é a mais firme e determinada repressão. Qual a mais eficaz, pode-se e deve-se discutir. Mas a palavra imprescindível é mesmo: repressão.

Como escrevi no princípio, nada disto é excessivamente surpreendente. Ainda conheci gente que, nos anos 80, negava a existência do pacto germano-soviético, e comunistas e afins longamente recusaram admitir a pura e simples existência do Gulag. Octavio Paz chamou algures a esse tipo de atitude, e reflectindo sobre a palavra, um “pecado”. A esquerda tem, portanto, uma sólida e bem estabelecida história de convívio com a negação, o desviar de olhos e a inversão das conexões causais. Uma tradição miserável, que convida desde há muito a uma dissociação das correntes mais vocais da seita. A única coisa que surpreende, uma surpresa local, por assim dizer, é que é isto que, aqui e agora, sustenta o nosso Governo.