Aconteceu ter de coligir uns dados sobre a evolução da confiança dos cidadãos dos Estados Unidos nos órgãos de informação tradicionais exactamente no dia em que estava a decorrer a votação para a Casa Branca. Havia um dado que eu já conhecia: neste momento a imprensa norte-americana (jornais, televisões e rádios) é a instituição pública de que os cidadãos mais desconfiam. O seu prestígio bateu literalmente no fundo, desceu mesmo abaixo do Congresso, habitualmente a instituição mais mal vista. Mas havia um outro dado que eu não conhecia: só uma vez no passado tinham estes índices de confiança no jornalismo descido tão baixo, e esse ano tinha sido 2016. Numa altura em que poucos se atreviam, com seriedade, a prever o resultado da eleição, naquele dia das sondagens 50/50, interroguei-me sobre se este novo mínimo de confiança nos órgãos de informação tradicionais não seria um indicador de que poderia vir aí uma surpresa, como a de 2016.

Escuso de vos descrever o que aconteceu nas horas seguintes, e o que continua a acontecer por estes dias quando uma parte do “comentariato” e outra boa parte dos que pontuam nas redacções continuam a ter dificuldade em sequer tentar compreender porque é que Trump ganhou, sobretudo em tentar compreender porque há tanta gente que não só pensa de forma diferente, como vota de forma diferente. Ou sequer em imaginar que isso pode suceder, entre outros motivos, porque essa gente vive de forma diferente, tem outras inquietações e outras urgências.

Há oito anos, quando a grande comunicação social norte-americana ficou em estado de choque por não ter sequer previsto a hipótese de Trump ser eleito, escreveu-se imenso sobre a necessidade de os jornalistas saírem da sua “bolha” e de procurarem descer às realidades daquelas partes da América que tinham empobrecido e se sentiam esquecidas e marginalizadas – essa América que dera a vitória a Trump. Devo dizer que sucedeu exactamente o contrário. Quem lê, como eu leio quase diariamente, a imprensa dos Estados Unidos percebeu que em vez de procurarem sair da sua “bolha”, os jornalistas encarniçaram-se antes em tomar sempre o partido anti-Trump, fosse qual fosse o debate nacional em curso. Houve excepções, há sempre excepções, mas ainda nesta campanha eleitoral era possível tropeçar em artigos, publicados pelas elitistas revistas de Nova Iorque, onde se tratava de “explicar”, ridicularizando, a forma como os eleitores “pouco instruídos” votavam.

Infelizmente em Portugal não temos estudos que nos permitam perceber o grau de confiança nos nossos órgãos de informação, infelizmente só sabemos que a circulação dos jornais em papel continua a cair vertiginosamente e que a audiência das televisões tradicionais também está a dar trambolhões. Tal como sabemos que a maioria, eu diria mesmo quase a totalidade, das empresas de comunicação social atravessam dificuldades financeiras e que os profissionais deste sector ganham, por regra, bastante mal. Disso tudo temos conhecimento porque não faltam por aí muitas queixas (algumas legítimas) e algum choradinho (esse mais dispensável, para ser generoso no epíteto).

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Em contrapartida, o que nós sabemos também dos Estados Unidos é que a confiança nos órgãos de informação não é a mesma entre democratas e republicanos: entre os democratas ainda se aguenta acima dos 50%, nos republicanos caiu para cerca de 10%. Isto é um sinal claro sobre o porquê da perda de confiança nos media tradicionais: eles são vistos como pouco ou nada objectivos, ou dito de uma forma mais dura, como sendo tendenciosos e muito, mas mesmo muito inclinados para a esquerda, para o lado dos democratas.

Uma vez que está fresca a memória de quem foi seguindo a cobertura das eleições americanas nos nossos órgãos de informação, pergunto-me que leitura farão os leitores, ouvintes, espectadores do que lhe foram dizendo nestas últimas semanas ou meses? Quantos repetiram, e repetiram, e repetiram que uma vitória de Trump seria praticamente impossível, isto desde que Biden se retirou da corrida? Quantos foram dando conta das motivações dos que iriam votar Trump e quantos só se preocuparam em repetir que a democracia estava em perigo, o principal argumento da campanha de Harris?

E já que a memória também continua fresca sobre alguns acontecimentos políticos em Portugal, quantos jornalistas se tentaram colocar nos sapatos dos habitantes dos bairros sociais de Loures, nos sapatos de uma daquelas famílias a quem incendiaram e destruíram o carro, ou que viram aquele homem a arder dentro de um autocarro, e procuraram imaginar como essas pessoas se sentem, ou sentirão, por serem obrigadas a viver em zonas onde há vandalismos contra os quais a polícia parece impotente?

O clamor um pouco por todo o lado – e neste caso também no interior do Partido Socialista – foi logo o de necessitamos de agir “com humanismo”, daí decorrendo a necessidade de condenar de imediato as declarações do autarca socialista de Loures (não fosse o homem socialista e creio que o clamor seria ainda maior).

Não vou neste texto discutir a bondade ou o acerto dessas declarações, vou apenas chamar a atenção para que uma das obrigações dos jornalistas é não serem apenas pés de microfone que andam a saltitar de protagonista político em protagonista político a colher declarações, e que, em vez disso, devem procurar perceber, e depois explicar ao seu público, o porquê de uma declaração aparentemente tão surpreendente.

Imagino que haverá muito poucos jornalistas a habitar em bairros sociais, mesmo sendo baixos os salários nesta minha profissão. Sendo assim, imaginem que não estão num bairro social, administrado por uma autarquia e subsidiado com dinheiro dos contribuintes, mas sim no vosso prédio, no vosso bairro mais ou menos pacato, no vosso espaço onde as coisas se vão resolvendo em reuniões de condóminos ou em negociações com os senhorios. E agora imaginem que um dos vossos vizinhos incendiava o carro que tinham estacionado na rua, um carro que tanto vos tinha custado comprado em segunda ou terceira mão. E que antes disso esse vizinho tinha dado cabo do elevador. Ou então danificado o sistema de recolha de lixo. O que fariam? Dar-lhe-iam uma palmadinha nas costas a próxima vez que se cruzassem com ele nas escadas, citar-lhe-iam a Constituição acrescentando que em Portugal não há penas acessórias, ou em vez disso tentariam que ele deixasse de ser vosso vizinho?

Não, nada disso. É mais fácil apanhar o comboio onde todos estão a entrar e dizer que estamos todos a ser infectados pelo discurso do Chega, sem perceber, ou sem querer perceber, que é exactamente assim que se vai fazendo o sucesso do Chega.

Eu podia continuar a multiplicar exemplos, uns mais políticos, outros mais ligados a modas culturais, outros sobre como certos estereótipos infectaram redacções inteiras e de como a ideia de que o jornalista é independente (e deve ser) tem cedido espaço ao jornalismo quase activista (nos Estados Unidos foi mesmo isso que aconteceu, com os resultados que estão à vista). Mas não vou continuar a multiplicar pequenas histórias, vou apenas sublinhar o que me parece essencial: quando enchemos a boca a dizer que as redes sociais estão a matar a democracia devíamos estar bem conscientes que aquilo que pode matar, ou pelo menos comprometer gravemente a democracia, é o suicídio do jornalismo, um suicídio a que estamos a assistir em directo e ao vivo.

Nós não fazemos jornalismo para nossa auto-satisfação ou para estarmos de bem com os nossos pares – nós fazemos jornalismo, ou devíamos fazer jornalismo, para que exista uma cidadania bem informada e com confiança na informação que recebe. É essa confiança que muito deste jornalismo enviesado está a comprometer, porventura irremediavelmente.