Anda por aí um trepidante alvoroço a pretexto de um papel assinado por meia centena de notoriedades da direita portuguesa. Não fora o facto de ter surgido durante a composição do próximo governo da Região Autónoma dos Açores, que finalmente porá cobro a 24 anos de compadrio cesarista, o texto seria completamente inócuo, por banal e genericamente elementar no pouco que lá vem escrito. Todavia, no meio de tantas proclamações de adesão e repulsa, de elogios e insultos, de manifestações de agrado e desagrado e até de algumas elucubrações de pretensioso pendor doutrinário, ninguém constatou o óbvio: que, de entre as várias dúzias de assinaturas, falta uma, a do Dr. Paulo de Sacadura Cabral Portas.

Se calhar, também não precisaria de lá estar, porque, embora não figurando em letra de forma, ela está presente da primeira à última palavra do documento. De facto, com exceção de raríssimos nomes dessa lista, todos pertencem, de algum modo, a uma geração política formada no único verdadeiro think tank que a direita indígena foi capaz de criar em quase 50 anos de democracia, o jornal O Independente, cujas repercussões e influência política estiveram muito para além do CDS do seu polifacetado diretor. O portismo não se confinou ao partido do Caldas, nem às suas quase sempre exíguas percentagens eleitorais. Foi uma cultura e um estilo, por vezes com marcas pessoais indeléveis, uma forma de estar e de ver, uma trend urbana e moderna, uma quase estética política frequentadora dos locais mais elegantemente cosmopolitas da nossa rural paroquialidade. No centro desse pequeno grande mundo estava, carismático e brilhante, Paulo Portas. Entre discursos galvanizadores, zangas e guerras fratricidas, confrontos com o Ministério Público, momentos eleitorais de ânimo e desânimo, visitas a feiras e mercados, Paulo Portas levou a direita, esta direita, a sua direita, uma direita cuja personalidade nunca ninguém soube ao certo caracterizar, duas vezes para o Governo. Uma, no ciclo Barroso-Santana e outra, com Pedro Passos Coelho. Subitamente, quando depois de quase cinco anos de um exigentíssimo Governo de emergência nacional, que aplicou um violento pacote de austeridade sobre os portugueses, a coligação eleitoral PSD-CDS ganhou as eleições legislativas, Paulo Portas renunciou à vida política.

Fez bem. O seu apurado faro político levou-o a entender o que quase todos os demais protagonistas da direita, os do seu partido e os do PSD, tardaram a compreender: que a geringonça constituía uma verdadeira rutura da nossa ordem constitucional material, que sempre excluíra, do arco governamental, os partidos que se não reveem integralmente na democracia liberal. E intuiu também outro facto de importância vital: que essa esdrúxula coligação seria muito mais do que um mero entendimento de Governo ou uma frente de esquerda programática e ideológica. Ela formou uma aliança negativa para a conquista do poder do Estado, com proveitos e custos para todos os envolvidos, que condenaria à irrelevância, quiçá à extinção eleitoral, a formação partidária que abruptamente fosse responsável por lhe pôr fim. Isso garantiria, mesmo com as relações pessoais e partidárias degradadas, anos e anos de Orçamentos do Estado aprovados e a viabilização de um Governo, só na aparência minoritário e singular, do Partido Socialista. Foi assim há seis anos e assim continua a ser hoje.

Por conseguinte, sabe muito bem, o Dr. Paulo Portas, que, a partir da geringonça do PS, em Portugal já se não receberá o poder por descuido ou perda de quem está no seu exercício, mas por conquista aritmética de 116 deputados, isto é, de mais um do que os 115 em que simetricamente se dividem os ocupantes do hemiciclo da Assembleia da República. Pragmaticamente, também ele faria a caranguejola que o Dr. Rui Rio inteligentemente permitiu que se fizesse nos Açores, se tivesse hoje responsabilidades partidárias. A caixa de Pandora aberta por António Costa em 2015 não pode, tão cedo, voltar a fechar-se. E, tal como no mito grego original, de todos os males e infortúnios que esse infernal recipiente continha, apenas a “esperança” se salvou e permaneceu incólume.

Apesar de já estar há muitos anos distante da política partidária, o Dr. Paulo Portas não perdeu, legitimamente, a esperança de regressar ao primeiro plano da política nacional. Efetivamente, não se concebe vê-lo, por muito mais tempo, aos domingos, de ponto na mão, a explicar aos espetadores da TVI o que se passa com os grandes deste mundo, com as epidemias e tragédias que nos assolam, as maravilhas e os prodígios da Ciência, as vacinas da Covid e com o que os outros que estão na política, onde ele sempre esteve e, apesar de nunca a ter verdadeiramente deixado, quer voltar a estar, vão decidindo sobre o destino dos homens comuns. Paulo Portas não nasceu para disputar audiências televisivas com Luís Marques Mendes.

Com a argúcia que sempre o caracterizou, Paulo Portas já terá mais do que percebido que a direita vai ter oportunidade de continuar a ocupar o Palácio de Belém a partir do ano já não tão longínquo de 2026, até porque o governo pandémico de António Costa tem tudo para continuar a correr mal. Para essa eleição não se antevê um candidato que a possa unir e mobilizar, a não ser, talvez, ele próprio. Mas, para isso, o espaço político do portismo não pode desaparecer. Não pode ser retalhado pelo Chega, pelo PSD, pela IL e por um CDS anémico e sem expressão, que decididamente já não lhe pertence. Tem de ser preservado como ideia e conjunto de princípios, ainda que ninguém os saiba exatamente enunciar, por pessoas que mantêm alguma visibilidade mediática e com regras de demarcação em relação aos bárbaros que o querem invadir. Sobretudo, neste momento e num futuro próximo, André Ventura, que o ameaça mais do que qualquer outro, porque entra muito bem no eleitorado da direita conservadora e porque, se deixar de dizer alguns disparates e vacuidades, que lhe são muito comuns, e começar a frequentar, mediática e solenemente, a missa dominical, fará as delícias de quem outrora se consolava com o assombro das capas de O Independente.

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