Mil novecentos e sessenta e dois, tinha seis anos. O mundo a abrir-se para mim. Tudo era novo e desafiante. Em Samora Correia, município de Benavente, terra humilde sem gente ilustre, iniciava nesses idos de Outubro a minha aprendizagem e fazia os primeiros amigos. Aprendi por esses tempos o significado de cumplicidade e partilha. Aprendi os limites e as regras que me permitiram viver no meio de uns e ter o respeito de outros. Aprendi a importância da pertença a um grupo, a uma comunidade.

Mas a aprendizagem e as escolhas nem sempre foram fáceis. Nem tudo era claro e havia momentos em que se impunha fazer escolhas. Umas eram fáceis e óbvias, outras, as mais difíceis, eram sempre complexas e implicavam perdas e ganhos. As escolhas desses tempos ledos recordo-as com doçura e nostalgia, e de algumas em particular lembro-me bem!

Estava na escola, numa sala toda ela dominada pela figura austera da D. Urraca. Ainda hoje estremeço ao recordar o seu nome e aquela personagem. Recordo-a sempre de negro, esguia, alta, tão alta que dos meus olhos parecia roçar o teto. Recordo-a a questionar-nos, a perscrutar-nos por cima dos seus aros metálicos, sempre atenta, sempre lesta e austera à mais pequena ruga no nosso comportamento.

A meio da manhã saíamos para o recreio. Não me lembro se havia toque, se o sinal era dado pela linha do sol que vertia pela janela virada a este. Talvez não fosse por nada disso e estivesse farta de nos aturar, ou que o corpo lhe pedisse uma pausa. Fosse porque fosse, o recreio era sempre a melhor parte do dia. Se me perguntarem se nos tempos de escola me destacava na leitura ou nas “contas”, eu diria que era no recreio que sobressaía, era aí que era feliz.

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E foi nesse recreio, nesse quadrado mágico de poucas dezenas de metros de lado que fundei os meus alicerces. Fiz amigos, corri, brinquei, saltei e fiz escolhas. Recordo de nos jogos haver sempre duas equipas, os nossos e os outros (uns de tronco nu, outros não). Foi aí que, conscientemente e sem tutela escolhi entre uns e outros. Inicialmente fui de uns, acho porque aí tinha mais amigos, mas não fiquei por lá muito tempo. Rapidamente passei para os de “tronco coberto”. Ainda hoje me pergunto o que me levou a tal traição. Creio que foi o fascínio de pertencer a um grupo que tinha como ídolo “o pantera negra”, o Eusébio, um ícone. Creio que foi isso que me pendeu o coração. Esse era o meu mundo e essas eram as minhas preocupações.

Longe estava eu de imaginar que a mais de cinco mil quilómetros de distância havia quem fizesse escolhas, alguém cujas decisões determinavam o meu futuro e o da humanidade.

Como num jogo a duas mãos, uns e outros determinavam o destino. Uns por se verem farol da liberdade, da sua liberdade e por isso entenderem que a autodeterminação e a soberania eram atributos defensáveis se não desafiassem o seu próprio modo de vida. Um modo de vida assente na “liberdade”, mas num conceito de liberdade que sempre sobrepôs a sua liberdade à liberdade dos outros.

E os outros, os autocráticos que já há muito tinham abandonado o romantismo da revolução de outubro e pautavam agora as suas escolhas por conceitos simples de uns contra os outros.

Uns e outros ditavam os dias, mas não sem a velada intervenção dos “revolucionários barbudos” que, dotados de um romantismo de adolescente, interpretaram os anseios de uma população pobre, explorada e esmagada pelo opulência e autoritarismo do poder instalado.

Como qualquer povo que se liberta da opressão era inevitável que na enxurrada revolucionária tudo fosse questionado e reescrito. E claro que o povo tinha esse direito e com igual clareza e legitimidade os “os revolucionários barbudos” souberam interpretar esse desejo.

Do outro lado da ilha, na outra “ilha”, mais a norte, exilados, expropriados e gente pouco recomendável como a representada no filme de Francis Ford Coppola de 1974, “O Padrinho Parte II”, desenharam o desastre de Abril de 1961, o golpe que para a história ficou conhecido como o da “Baía dos Porcos”. Mas este assalto à “Playa Girón” resultou num vexame para os estado-unidenses e em particular para os falcões que, com a vaidade ferida, desde logo tiveram urgência em lamber as feridas e cicatrizar o orgulho.

O cenário para o abismo estava montado. Só faltava alguém que fizesse as escolhas erradas. E muitos foram os protagonistas que lideraram as más escolhas e tomaram opções erradas. Desde logo os derrotados da Baía dos Porcos, a que se acrescia todos aqueles que culpavam a administração americana por ter perdido a China para o campo comunista e os que achavam que no final da contenda entre os sobreviventes, não importa quantos, se entre os americanos houvesse mais um que russos, isso seria uma vitória. Para esses, que sempre tiveram o dedo no gatilho e a mira focada em Cuba, qualquer pretexto seria bom para dar um passo em frente ao abismo – um abismo satirizado no filme de 1974 “Doutor Estranho-Amor” de Stanley Kubrick.

Do outro lado do tabuleiro, o outro jogador sentia-se acossado pela superioridade militar americana, e pela desproporção de arsenal nuclear de então, 1/muitos mais. Os falcões desse lado do tabuleiro viam-se ainda mais acossados com os arquétipos em perigo, quando o líder de então, Nikita Khrushchov, depois de satanizar o seu antecessor, enveredou pela desvalorização das estruturas militares clássicas em prole de uma segurança que o armamento nuclear lhe parecia garantir. E claro, armas nucleares são sempre defensivas desde que sejamos nós, e não outros a ter o dedo no gatilho.

Nesta liderança não contestada abertamente, Nikita Khrushchov sentia que qualquer passo em falso seria aproveitado por aqueles que na sombra aguardavam a melhor oportunidade para o abocanhar. Precisava assim o líder soviético de uma acção que com espetacularidade equilibrasse o potencial de armas que à altura pendia claramente para o lado americano.

Essa oportunidade surgiu com a disponibilidade dos “barbudos revolucionários” em receber as “armas táticas”. Com esse passe de mágica pretendeu aproximar as suas ogivas aos “outros” e assim balancear as americanas que em solo europeu estavam apontadas ao coração soviético.

Este era o enquadramento de então, mas pouco importa para o que pretendo sublinhar, e que é o direito de um povo, uma nação em fazer as suas escolhas. Não importa se boas, se más, são prorrogativa sua. E isso, em 1962 foi negado a Cuba com soberba e pesporrência.

Mas esta não foi a imagem que passou no mundo ocidental. Na maioria dos registos históricos, a crise dos misseis de cuba é vista como um desafio que a União Soviética lançou ao mundo ocidental que se não tivesse sido combatido na origem, talvez tivesse pervertido o nosso futuro.

Talvez! Mas curiosamente, sessenta anos depois, o confronto tende a repetir-se, mas agora com papéis e posições invertidas em espelho. Se na década de sessenta eram os EUA a potência que ameaçava invadir, sessenta anos depois os invasores são os herdeiros da União Soviética e os EUA a passaram a assumir a defesa dos valores de soberania, autodeterminação e integridade territorial.

Não deixa também de ser curioso que as vítimas, tanto as de há sessenta anos como as actuais foram e são os mais aguerridos adeptos da resolução pelas armas. Em ambos os casos os líderes são fortes, vestem igual, são carismáticos e têm inequivocamente as populações consigo. Em ambas as ocasiões ouvimos as sentidas palavras de ordem “patria o muerte” ou “Україна завжди”.

Não importa os motivos pelos quais os russos em 2022 invadiram a Ucrânia e colocaram de novo o abismo na ordem do dia. Pode ter sido para esconder dificuldades internas, para afirmar a liderança, para camuflar fracassos anteriores (leia-se perda do império soviético), porque os falcões desembainhavam as garras, porque um odor de Ur-fascismo surgiu na sociedade, ou por sempre terem sido uma autocracia desde os tempos dos “Ruriques”. Enfim, porque podiam e achavam que isso lhes era permitido, ou tal como com os EUA em 1962 por se sentirem ameaçados pelas escolhas dos outros.

Foram dois abismos em que os interlocutores trocaram as posições. Quem há sessenta anos evocava a “Doutrina Monroe de 1823” é recordado como estadista com genialidade, inteligência e argúcia. Para os do outro lado do espelho estes adjectivos não têm equivalente. Muitos aliados dos EUA em 1962 não acompanharam as escolhas dos falcões americanos. Mas com esta posição não pretenderam mostrar respeito pela autodeterminação e soberania dos povos. Mais não era que um olhar para um umbigo, Berlim, ou resultava de memórias recentes quando pequenos acontecimentos aparentemente inofensivos tomaram conta do destino de 20 milhões de mortos e outros tantos feridos e estropiados. Não, não houve nem há respeito pelos outros. Aquilo que aos 6 anos aprendi, mais não é do que uma visão romântica da realidade. O mundo não é de duas cores e entre os decisores haverá sempre pombas e falcões.

Dir-me-ão que o mundo está diferente! É certo que sim. Em especial o da Europa Ocidental onde um comportamento que se vê dia-a-dia talvez resulte da maior prevalência do “gene” do altruísmo ou da tolerância à lactose entre as populações ocidentais.

Sessenta anos depois do meu “quest” vejo o mundo de outra forma. Um mundo onde em gabinetes há quem trace o destino e o futuro. Um mundo onde espero que alguém daqui a sessenta anos recorde os seus idos de Outubro de 2022, altura em que num qualquer recreio o mundo se resumia a optar fosse pelo que fosse, mas o fosse enquanto menino capaz de recordar esses tempos com carinho e doçura. Oxalá tenhamos esse futuro.