Quem matar outra pessoa: é assim, ao jeito de um thriller que nos agarra pelo colarinho, que abre a Parte Especial do nosso Código Penal.

O ‘quem’ que mata – e esfola e ameaça e rouba e difama e trai a Pátria e abandona animais de companhia – somos todos nós. Salvo seja, claro: podemos ser todos nós. É essa a fórmula utilizada na lei para dizer o óbvio: em regra, todo e qualquer crime pode ser cometido por toda e qualquer pessoa.

Conta-se, não sei se como lenda ou mito, que Cavaleiro de Ferreira, professor de direito penal e penalista de escol – como dizem os juristas de escol –, chamava por esta razão ao Código Penal do regime democrático, de 1982, o Código dos ‘quens’. Tendo Cavaleiro de Ferreira sido ministro da Justiça entre 1944 e 1954 (em que as normas do Código Penal de então começavam por ‘aquele que’), será legítimo ver no trocadilho algo mais do que um saudável espírito galhofeiro.

Histórias à parte, o trocadilho é bom e dispõe bem. Falo e aproveito-me dele para falar-vos do fenómeno milagroso e insondável – assim são os desígnios de Deus, segundo doutrina acreditada – da sua multiplicação no caso das empresas.

Durante séculos, as empresas não cometiam crimes. Melhor dizendo: as empresas não eram penalmente responsáveis, mesmo quanto a crimes praticados em seu nome e no seu interesse, e no contexto da sua organização. (Naturalmente que há uma frase em latim que diz tudo isto muito bem dito, mas pouparei os leitores à experiência esotérica de ressuscitar línguas mortas.)

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Com honrosas exceções, em que se incluem os alemães e o seu, digamos, irritante rigor com os rigores, a tendência de hoje é outra. Entre nós, desde o velhinho Decreto-Lei n.º 28/84, que nos deu um inspirador catálogo de infrações antieconómicas e contra a saúde pública, com destaque para a especulação e o açambarcamento, a responsabilidade penal das empresas foi abertamente consagrada, ficando essa abertura escancarada com a reforma penal de 2007.

Não sei se por influência dos rigorismos da Europa do Norte, ouviram-se aqui e ali alguns alertas: atenção que a responsabilidade penal das empresas não pode servir como ‘biombo’ ou ‘para-raios’ da responsabilidade individual das pessoas individuais; atenção que a responsabilidade penal das empresas é e tem de ser autónoma, assente em fundamentos e critérios próprios, e não nasce nem se forma automaticamente por decalque, como mera consequência acessória da responsabilidade penal de pessoas individuais.

Os mais afoitos, e sobretudo aqueles que acham que na era moderna o que importa sempre e a todo o custo é ser moderninho, fizeram o que sempre fazem: descaso. Mas que nada, lá vêm os velhos do Restelo, vão mas é chatear o Camões.

Lendo o que li há um par de horas, e que não há forma de me descer no estômago, presto aqui a minha curvada homenagem a todos esses velhos, do Restelo e de outras paragens, mesmo se ainda novos e apenas casmurramente velhos de cabeça: a razão estava convosco, camaradas.

E o que acabo eu de ler numa peça processual de um digno procurador da República? A seguinte conclusão lapidar, augustamente antecedida de um romaníssimo “XL”: “Obviamente que não sendo a pessoa coletiva uma pessoa física não se pode dizer que a sociedade arguida atuou com dolo.” Absolva-se então? Não, condene-se! A ideia, simplificando sem risco de ligeireza, é esta: a empresa responde por crime doloso mesmo sem dolo, até porque isso do dolo da empresa é coisa que não lembra ao Diabo.

Mas o Diabo, já se sabe, esconde-se nos pormenores, e o dolo é aquela coisa – chamemos-lhe assim, para desgosto dos dogmáticos da dogmática – que tem de se provar sempre nos crimes ditos dolosos. Esse dolo implica conhecer e querer praticar um certo facto, descrito no tipo de crime em causa, e é mais ou menos como o cartão de cidadão: pessoal e intransmissível.

Digo isto e vejo braços no ar e protestos dos moderninhos de serviço: mas como raio é que uma empresa, que não tem braços nem pernas nem cabeça, que não vê, que não sente, que não se mexe, pode saber e querer o que quer que seja?

A resposta tem a complexidade de um bê-á-bá: se a empresa não puder saber e querer o que quer que seja, assunto encerrado, porque à constatação dessa impossibilidade segue-se a impossibilidade de responsabilizar a empresa pela prática de crimes dolosos. Tão simples quanto isto. Se essa coisa do dolo da empresa é, afinal, pura bizantinice dos juristas e dos seus pruridos, a empresa torna-se mera extensão de factos individuais, o que por sua vez equivale a negar a sua responsabilidade própria e autónoma – ou a dizer, evocando a irrespondível tirada que encontramos em abundância nas epístolas de Fonseca e Meireles aos portugueses, de vocês sabem quem: “Mas tu não tens personalidade jurídica!”

Os paladinos da modernidade podem ainda assim ir em paz e deitar os cartapácios ao chão. Estou com a maioria que acha que a responsabilidade penal das empresas não é só legítima e necessária, como juridicamente defensável. Mas, como em quase tudo na vida, com um grão de sal, com bom senso, com o mínimo dos mínimos, e com a linha vermelha traçada onde a responsabilidade penal da empresa se dilui numa responsabilidade objetiva, automática, por efeito de ricochete ou contágio.

Um conhecido professor de direito americano (lamento muito, mas não me rendo ao estadunidense) chamou a um dos seus livros mais célebres Taking rights seriously. Na responsabilidade penal, em geral e das empresas, não é preciso pedir nem exigir mais: basta levar coisas sérias a sério.