Desde o início da maioria absoluta que a realidade tem emergido com grande velocidade, pintando um quadro muito diferente do que o que tínhamos anteriormente. Onde o ministro Pedro Nuno Santos parecia um campeão político, revelou-se o seu amadorismo e gestão por whatsapp, brincando com milhares de milhões de euros, com resultados de estaca zero (veja-se a TAP), que agora tão habilmente faz esquecer. Onde a ministra Marta Temido que parecia estar a salvar o SNS ao som da internacional, revelou-se a degradação total e o pior dos resultados, que levaram a sua demissão. Hoje, também a ex-ministra procura fazer esquecer.

Antes, parecia haver a perceção de que a narrativa do PS triunfara: que a austeridade tinha sido desnecessária, que um dos principais efeitos psicológicos da troika tinha sido invertido (aquela sensação de que a vida pré-troika nunca poderia voltar), e que poderíamos de facto voltar a viver como vivíamos em 2007. Devo recordar, que apesar de tudo, esteve sempre à vista que uma das receitas sagradas do governo de Costa eram as contas certas, que substancialmente é o verdadeiro equivalente ao “ir além da troika”, que Costa criticava, mas ao mesmo tempo reconheceu que era o que o povo pedia, e procurou seguir pela via das suas cativações e integrou o défice orçamental no coração da sua mensagem política. Ora, estes dois conceitos são antagónicos: se havia a capacidade de trazer a qualidade de vida de volta a 2007, porque não foram revertidos os aumentos de impostos e o congelamento de carreiras (vamos ser sérios, devolver 1% não é descongelar, por muito que se repita). O mesmo é dizer, se não tinha sido preciso austeridade, por que a aplicam com tal zelo? A resposta a esta pergunta, será o fim da narrativa, e o regresso à realidade.

O zelo da austeridade de António Costa, que optou pela via das cativações, isto é, o anúncio de um orçamento e a execução de outro, é cego. O anúncio cria expectativas, e a execução desilusões, e sobretudo, geridas a partir do ministério das finanças, as cativações dificilmente têm em conta o que se passa no terreno (daí ser cego), criando assim lacunas no Estado, que crescem com a força de um juro composto (exponencialmente). Se as lacunas forem ameaçadoras politicamente, como vemos por exemplo na saúde, encobrem-se, se não forem, segue-se em frente discretamente.

Chegados a 2023, o que vemos com a maioria absoluta é o governo a nu, incapaz de ir além dos casos e casinhos, a falhar em toda a linha, em todas as políticas, sendo a sua comunicação/propaganda a única frente capacitada e em funcionamento. Nas políticas, vemos uma confusão tremenda com remendos a leis e volte-faces, como é o caso da habitação e das rendas. A força da comunicação do governo permitia e permite ainda hoje encobrir situações graves, apenas normais num país de terceiro mundo, na saúde, na justiça e na educação. Vamos ouvindo uns casos soltos de vez em quando, mas esquecemo-nos na espuma dos dias e nas novelas políticas. E o governo, vai-se agarrando a todas as boas notícias que pode encontrar, enquanto afoga as más.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Contudo, por toda a mestria da comunicação, esquecem-se de algo: as pessoas falam. Quem conhece um médico, um professor, um juiz/advogado. Quem apanha o comboio, metro ou precisa de usufruir do SNS, enfim qualquer pessoa entre as mais afetadas pelo caos governativo, sabe perfeitamente que a situação real no terreno não coincide com o país das maravilhas que nos tentam vender.

Eu, como economista, também vejo bem como se procura exaltar boas notícias nessa área, quando há alguns sinais preocupantes na situação financeira das famílias e no consumo privado. A baixa taxa de poupança e os juros crescentes são um caminho de declínio, que desta vez em vez do Estado recai nas famílias, e que é mais grave pois por muito que se vá distribuindo 125€ (um reconhecimento efetivo da situação grave). Em boa verdade, a falência ao nível das famílias é uma falência que não surge nas notícias, quando muito surge com um teor positivo como um superavit orçamental, que o nosso ministro das finanças exaltaria prontamente.

Então, ao fim de 7 anos, o que foi feito? Onde está a obra? Onde está a marca do primeiro-ministro António Costa? Foi gerir fundos europeus? Foi aumentar o salário mínimo, que foi prontamente revertido pelo aumento do custo de vida? Sabemos bem que não há obra, houve e há gestão corrente, numa amálgama de ambições pessoais que se agregaram num projeto político de estabilidade na estagnação, que não passa de um projeto poder para usufruto pessoal do mesmo, subvertendo assim a missão original do poder: servir o país.

Esse projeto que nos faz questionar as instituições, que demoraram anos a construir, pois estão comprometidas, com personalidades incapazes à cabeça, que todos sabemos serem indignas do cargo que ocupam. Temos por exemplo o ministro João Galamba e o Governador do banco de Portugal. Vale a pena relembrar que quem nomeia o governador do Banco de Portugal é o ministro das finanças, cargo que o mesmo ocupava pouco mais de um mês antes. O facto de não haver qualquer questão sobre a passagem do mesmo de um cargo para outro cargo que o mesmo nomeia, põe em dúvida a nossa capacidade de atingirmos as democracias avançadas. A incapacidade não vem do sangue nem da fama, vem das atitudes e da ética que se segue. A questão ética no Estado e nas instituições não é um acaso, é um bem necessário ao seu normal funcionamento, tão necessário como gasolina para um motor de combustão.

No caso do ministro, o presidente da república já disse tudo, mas no caso do governador, remeto para o último artigo de opinião do mesmo, onde o mesmo parece ou ter encarnado o cargo de ministro das finanças, ou até mesmo imaginado ser Presidente, talvez ambicionando esse cargo (como tantos outros), esquecendo que o cargo de Governador é de supervisão e não de liderança. O uso dos altos cargos institucionais para atingir ambições pessoais danifica a confiança do país e das instituições, e é em si um retrocesso civilizacional, pois vários cargos são ocupados por procuração, enquanto outros são exercidos com as ambições em mente, e isto significa que várias peças do motor não fazem a sua função. Que órgão está capaz de fazer uma análise honesta, sem correr o risco de despedimentos e afastamentos, agora recorrente nas opiniões divergentes. Com este ambiente, onde fica a verdade? Isolada fora dos media, apenas na frente de cada um de nós, os que a vivemos. Com este ambiente, triunfam as ambições pessoais, e sofre o resto do país.

O país sofre um agravamento do custo de vida e vê as suas condições degradarem-se em várias frentes, por um lado, e por outro o governo e os seus protagonistas associados procuram promover a ideia de que estamos no nosso auge e que a economia está em altas. A comunicação política do governo de hoje, quando não há boas notícias, é um novelo de novelas a desenrolar, sem consequência, cada vez mais fruto dos combates que as várias personalidades fazem entre si, para atingirem as suas ambições pessoais, em detrimento de todo o resto. Ambições presidenciais, de presidência do conselho europeu, de substituição do primeiro ministro, de secretários de estado para serem ministros, são sempre legítimas, mas não se for à custa do cargo que exercem atualmente.

O motor do estado tem sido composto por fios que querem ser bateria, válvulas que querem ser cilindros e travões que querem ser caixa de transmissão. Quando perguntamos a uma peça por que não faz o seu papel, a resposta natural será algo que nos lembramos de dizer na escola: os outros fazem igual. Perante o total relativismo moral que vivemos ao nível de Estado e instituições, questiono-me quanto tempo o aguenta o motor neste registo. Temo que a resposta seja: muito mais do que se imagina. Até lá, o motor do Estado fica mais disfuncional, as suas peças ficam cada vez mais deslocadas, e o seu combustível escasseia. Impõe-se a questão ao Presidente da República: sente-se confortável a chefiar este Estado?