Podia ser o orçamento enguiçado, as bem amadas/mal amadas eleições, o início do jogo à defesa de António Costa, as cedências a comunistas em declínio ou o sissó das bloquistas-irrealistas. Também podia ser a coincidência de, no mesmo dia, o centro e a direita terem ouvido (segunda-feira), dois fortes “morceaux” políticos, Moedas na Câmara, Rangel em entrevista na TVI. Ao fim de um jejum demasiado prolongado, a política entrou audivelmente em cena naquela metade do país habitualmente triturada por António Costa que ou tinha emudecido, ou desistido, ou desacertado em todos os alvos (não se sabe o que foi pior). E também podia ser o cerco ao CDS, claro: onde, em vez de se pedirem contas aos que o deixaram como já esteve, se pedem ardilosamente contas aos que já o levantaram do chão. Sim, podia ser isso porque tudo isso é muito: é novo, é político e é sobretudo indiciador, com sinais para muitas moradas. Como acontece quando os ventos rondam.
Mas hoje, não. Hoje trata-se de evocar um “escolhido”. Coisa mais difícil, sabendo-se como se sabe desde que o mundo é mundo, que há muito mais chamados que escolhidos.
Hoje deixo aqui um deles.
1 Era só, foi sempre, o Padre Vítor . Nunca me ocorria a distinção de “Monsenhor” que lhe foi conferida pelo Papa Bento XVI. O curso das coisas não a reclamava: a amizade vivíssima, as relações pessoais ou religiosas, o trabalho comum, o convívio familiar. Ou os almoços de Natal onde durante alguns anos, presidiu à nossa imensa mesa, presidida por sua vez por alegre vozearia latina de três gerações. São tantas as memórias, que apetece dizer que há uma casa de memórias, casa cheia. Um privilégio e desde logo pela raridade: é menos comum poder evocar alguém sob tão diversificados patamares onde em cada um deles teve sólida, sábia, fecunda intervenção: como sacerdote, como cidadão empenhado no bem do país, como trabalhador incansável em diversas instâncias públicas, ligadas à Saúde e outros temas sociais. Junto de todos os extratos sociais, gerações, cores de pele, crentes ou nada crentes, leigos, religiosos, partidos, instituições, sociedade civil. País.
2 Mantive infelizmente uma relação “intermitente” com as missas dominicais da minha paróquia do Campo Grande, por estar quase sempre fora de portas nesses dias. Apesar porém dessa condição de “paroquiana só as vezes” não me lembro de não me lembrar de cada uma das homilias do “Padre Vítor”, nalgum domingo passado na cidade. Ouvi-lo interpelava tanto quanto simultaneamente responsabilizava – e que se pode dizer de mais “definitivo”? Ninguém saía indiferente dali. Sabíamos que aquele verbo atendia ao mais fulcral do Verbo Divino e por isso, ao ouvir o nosso pároco transformar a cada vez o Evangelho num convite a melhor vivermos e testemunharmos aquilo que nos competia ser e testemunhar, talvez quem sabe? crescêssemos na certeza da fé e da sua indispensabilidade. Quem sabe, mas o Padre Vítor sabia. Sabia e por isso sincronizava-se com fragilidade dos homens. Com um verbo forte, tónico, inspirado, inspirador , desafiante. Como uma chamada a que era necessário responder.
3 Um dia, justamente, ao ouvi-lo no Campo Grande, lembrei-me de repente que “aquilo” – homilias – não podiam ficar só ali, mesmo que bem guardadas no coração das assembleias. Era preciso dar delas notícia fora dos muros do templo:
“Padre Vitor, alguma vez pensou em publicar estas homílias? Era uma boa deia…E estarão gravadas ?” perguntei-lhe um dia a saída de um missa, ele assoberbado com paroquianos e não paroquianos, inteirando- se de todos, um a um, no portal da igreja: “ estão gravadas, estão, e desde há muitos anos”.
Dias depois, fui ao seu gabinete: concordou com a publicação de algumas das suas catequeses após escolha criteriosa, com o auxílio de alguns leigos em quem particularmente confiava e com ele colaboravam nas equipas da paróquia.
O segundo acto foi desafiar o editor Henrique Mota que certamente daria boa guarida a esta ideia. E deu. O Henrique sabe ouvir e depois usar de bom critério: respondeu à chamada. E tudo se combinou, tudo se fez, nasceu um livro. Chama-se “100 Entradas para um Mundo Melhor” (“Lucerna”).
4 Conhecia o padre Vítor de há muito mas o tempo foi cinzelando uma relação cada vez mais sólida, mais fraterna, mais pessoal. Cruzei-me inúmeras vezes com ele, dentro e fora das paredes da igreja. Vi Vítor Feytor Pinto “actuar” em diversos palcos e fóruns, entrevistei-o na televisão no Natal de 2003, num diálogo vivíssimo de roda do Advento e do que ele pode significar como esperança e recomeço. Admiro rasgadamente a formidável obra religiosa, social, humana, que ele levou a cabo na paróquia (iniciada aliás por outro “escolhido”, o Padre Armindo e felizmente bem continuada hoje pelo ainda muito jovem Padre Hugo Gonçalves).
Os meus pais eram paroquianos assíduos, a minha irmã Maria José colaborou com o Padre Vítor em múltiplas instâncias e variadas geografias. Estimava-o intelectualmente e respeitava-o espiritualmente. Sabia que ele possuía o condão da desmultiplicação por muitos e bons ofícios que sendo embora todos guiados a partir da cidade de Deus, estavam postos ao serviço da cidade dos homens. De tais ofícios outros falarão certamente muito melhor que eu. O que aqui quis deixar é o que considero ser nele a mais insubstituível virtude: a de consciencializar e responsabilizar pelas coisas da cidade de Deus.
Em nossa casa tivemos o privilégio de contar com ele em diversas cerimónias litúrgicas, em momentos de ameno convívio, em ocasiões festivas ou trágicas. Viu-nos rir e chorar, abençoou os que nasciam , despediu os que partiam. Enxugou-nos lagrimas de dor indizível, apaziguou os nossos corações destroçados. O que quero dizer é que de certo modo, ou melhor, de muito modo, o Padre Vítor “calhava” bem com a nossa antiga grande casa do Campo Grande. E se já não existem hoje nem um, nem a outra, deixaram tão impressivas, gratíssimas, riquíssimas memórias que é como se agora se abrisse a porta da casa do Campo Grande e o Padre Vítor entrasse por ali a dentro, ao nosso encontro. Como se (hélas) estivesse ainda tudo na mesma. Não se estranhe por isso que eu lhe admirasse dons e capacidades, que gostasse de dialogar com ele, que o entrevistasse na media, ou que lhe tenha proposto um livro. E ainda muito menos que o tivesse olhado com um olhar que queria ver mais longe que o de uma (sofrível) paroquiana intermitente.