1 No início de 2019 José Tolentino de Mendonça foi convidado pelo Papa Francisco – pessoalmente, por telefone — para orientar o seu retiro quaresmal.

Pouco tempo depois, novo convite ao sacerdote português: de Lisboa para Roma, da Capela do Rato para o Vaticano, da sua vida religiosa e das suas intervenções culturais em Portugal, para uma missão civilizacionalmente tão prestigiante quanto desafiante em Itália… O Chefe da Igreja tinha-o percebido: estava ali, em Tolentino, o “seu” bibliotecário-arquivista-mor. A tarefa de presidir à Biblioteca do Vaticano e ao seu Arquivo, encontrara um “tarefeiro” que trazia em si os dons e os dotes para ela.

O eco deixado no retiro papal pelo verbo decisivo de Tolentino ainda perdurava na memória do clero ali reunido: a vibração da sua fé, a vastíssima cultura teológica, o discurso marcado pelo seu irremediável avançar em direcção ao âmago de tudo; a escolha, que lhe acontece (sobre?) naturalmente, das palavras mais espiritualmente poéticas por saber que assim se serve melhor a Deus, ficaram para sempre impressas no pequeno templo.

No Papa Francisco, ficaram definitivamente: semanas depois o Padre José Tolentino de Mendonça seria nomeado oficialmente guardião-mor da Biblioteca Apostólica do Vaticano e do seu Arquivo Secreto.

2 Quando em Maio desse mesmo ano de 2019 nos encontrámos em Roma talvez ele já soubesse que o Papa Francisco o elevaria ao Cardinalato seis meses depois, eu obviamente não sabia e naturalmente não se falou nisso. E porque se haveria de falar se o propósito — inexcedível propósito — da viagem era a visita à Biblioteca e ao Arquivo conduzido pelo seu próprio guardião?

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Quando penso – e penso algumas vezes — no que foi o anúncio dessa possibilidade e semanas depois a sua concretização, revivo de cada vez algo de absolutamente invulgar: com o pasmo emudecido que subitamente envolver os momentos raros, poder circular silenciosamente por infinitos corredores que guardam o tempo de todos os tempos; olhar estantes, armários, prateleiras e perceber que estava ali documentado o mundo através da história das civilizações; percorrer salas e passagens para outras salas, como se, diante de telas, livros, tapeçarias, pedra esculpida, fossemos passando de século para século…

“Isto não o excede?”, perguntei eu ao cicerone das maravilhas.

“Excede, sim”, disse-me simplesmente o cicerone, olhando as estantes encimadas pelos frescos pintados nas paredes da Biblioteca. “Excede em beleza, em responsabilidade, em dimensão, em histórico…”.

E pensar que éramos só três os interlocutores do nosso anfitrião…Como se fôssemos transportados pelas asas de um escondido anjo, entre-olhávamo-nos com aquela espécie de estranheza que costuma tingir a indefinição entre a realidade e a irrealidade. Passando sem transição — nem preparação, mas talvez nunca haja preparação possível — do trivial da vida quotidiana para o quase demencial desafio de testemunhar as marcas e os marcos daquilo que fez e foi a nossa civilização. Conduzidos com uma terna atenção pela mão de José Tolentino de Mendonça, então Arcebispo, tempos depois Cardeal, amanhã não se sabe. O que sabíamos é que havia ainda mais que a sua generosidade naquela espantosa digressão, havia Tolentino, ele próprio. E a sua “marca” posta no modo como acolhia o nosso deslumbramento, conduzia a nossa curiosidade usando de uma doçura paciente face á nossa expectativa.

Como se fosse ele o escondido anjo que soubemos sempre estar ali.

3 Recordo tudo isto no primeiro dia deste ano, talvez o de todos os perigos, mas a alegria de saber Tolentino-Prémio Pessoa varre instantaneamente sombras e temores, libertando-me as asas da gratidão. E é por isso que aqui estou hoje: escrevendo porque é tempo de lhe agradecer o quanto lhe devo, escrevendo porque homenageio um premiado cujo prémio parece ter sido concebido para ele. Ou não é Alberto Caeiro um eleito (e Pessoa talvez um mestre?)

Homenagem e gratidão: há pouquíssimas pessoas a quem esteja tão grata como a este homem de Deus e poeta maior, poucas que considere assim; poucas que como ele tenham interferido de forma tão estruturante no meu caminho e não só espiritual; que eu tenha ouvido tanto, prestado tanta atenção, colaborado com tanto empenho. A parábola dos talentos devia ter um entre parêntesis consagrado à gratidão. Já sabemos o que nos recomenda quanto aos talentos recebidos, agora havia de se ver como ser responsável por aquilo face ao qual estamos gratos. Como transformar em responsabilidade a gratidão que devo ao Cardeal Tolentino? Como fazer render o que lhe ouvi um dia quando lhe perguntei como se olhava a si próprio, “ ali, dentro do Vaticano?”
“A vida, através de Deus, deu-me infinitamente mais do que alguma vez pude sonhar.”.

Através de Deus, disse ele. Fala melhor com Ele findas as pesadas tarefas que o ocupam, quando regressa à sua privacidade, a si próprio, ao espaço de silêncio que lhe é vital. Escreve, reza, lê, volta à sua poesia. Estão só os dois.

4 Podia só agradecer mas gosto de contar. Porque o protagonista merece ser contado e porque se deve contar, é uma forma de arquivar. De eleger. E nesse sentido também de homenagear. Se desistirmos de contar, que outro destino para o não contado que um poço vazio?

(“Nada acontece até ser contado” dizia Virginia Woolf no que é uma das minhas máximas, talvez a maior e que cito mil vezes.)

Nem sequer importa definir o fio – intuição? impulso? memória? melancolia? — que nos conduz. Importa só que o desatar do fio traga consigo aquilo que de tão misterioso é o poder transformador do contar. Mesmo que José Tolentino de Mendonça esteja sempre a ser contado, não tem importância.

5 Tive pena que ele não estivesse aqui, nesta primeira manhã do ano, luminosa e azul. Nesta paisagem atlântica de luz e maresia onde escrevinho, teríamos falado de Ruy Belo. Era sentimentalmente desta mesmíssima geografia, é alguém a quem Tolentino ama como Ruy Belo só pode ser amado: demasiadamente. Se tivesse mil palavras gastá-las-ia a contar o que ouvi ao poeta José, sobre o poeta Ruy mas fui ouvindo tanto da vida, do mundo, de Deus, ao poeta José – coisas férteis, fortes, belas, exigentes – que me perco na escolha desse fermento. Ou desses pontos cardiais.

6 Há muitas espécies de silêncios, sabemos bem, e mesmo que nenhum ecoe do mesmo modo, nunca será demais contar o que mora na Capela do Rato. É um silêncio só de lá. Lembra os lugares dos primeiros cristãos, rezando recolhidos e talvez atordoados pela sua nova condição de desafiantes de outra ordem; lembra a dureza da procura, a alegria do caminho encontrado, a descoberta, a chegada. Foi o “Padre Tolentino” (nunca o tratei de outro modo) que nos “ensinou” esse silêncio ao produzi-lo como seu primeiro agente. Mas os silêncios não se contam. Honram-se, se soubermos. Foi na Capela do Rato que também aprendi com Tolentino a vivência privilegiadíssima de algumas colaborações: a série de “Conversas sobre Deus”; as leituras da Paixão de Cristo nalgumas Páscoas; outra ainda mais inesquecível Paixão, em 2016 com Luís Miguel Cintra, o próprio Tolentino e esta escriba unidos nessa pungente recitação; as entrevistas que lhe fiz, os diálogos públicos que tivemos, o convite para o “Pátio dos Gentios”, em Guimarães, em 2012.

O convite, que mais me parecera uma “convocatória”, era aliás temível: que eu fosse apresentar a Guimarães os intervenientes da reunião internacional do “Pátio dos Gentios” que nesse ano era em Portugal. (O “Pátio” nascera da inspiração do Cardeal Gianfranco Ravasi, então Presidente do Pontifício Conselho da Cultura do Vaticano) para tonificar o diálogo entre crentes e não crentes e Ravasi, figura fulgurante, seria o “protagonista” . Dialogando com João Lobo Antunes em encontro onde interveio também Marcelo Rebelo de Sousa.).

Obedeci. Lá fui. Era uma maneira de ir aprendendo a ser gente. De continuar, porque foi sempre disso que muito generosamente tratou Tolentino: ensinar-me a valer um bocadinho a pena. A saber passar. A seguir em frente. (como não agradecer, não é?)

7 No ano de 2021, voltei a Roma. Numa cerimónia daquelas de que o Vaticano tem o segredo e o exclusivo, José Tolentino de Mendonça era elevado a Cardeal. O momento foi emotivo, profundo, íntimo. E soleníssimo. A seguir, numa sala deslumbrante que “dava” para a Capela Sistina, seguiram-se os abraços comovidos dos amigos presentes. Numa intimidade só possível e entendível por estar tão ligada à raiz silenciosa do que ali se testemunhava, vivia e celebrava.

8 Um dia, há quase dois anos, voltei ao Vaticano mas não estava Tolentino. Era Agosto em Roma, cidade deserta, mas estava o Papa Francisco. Conversámos muito e bem, percebi que havia de novo um anjo escondido que me conduzia. Como houvera já para fazer de um pedido profissional uma certeza, e de um sonho uma realidade.

E no entanto… como dizer? sair dali, sentar-me no Transtevere como se voltasse de uma maratona que tivesse ganho e perceber que á minha frente não estava o “Padre Tolentino” e que ele não seria o primeiro ouvidor do sonho real, foi uma pena indizível. Mas Tolentino estava em Portugal, era Agosto em Roma, cidade deserta.

9 Podia contar mais, querido Padre Tolentino, recordar mais, homenagear mais: o casamento de um filho celebrado por si; as conversas familiares; a pintura, a música; Fátima e a importância que tem para si e o Carmelo e a importância que tem para mim; as suas luminosas, sempre luminosas, intervenções que o vi fazer em tantos fóruns e sedes; o magnifico e tão erudito discurso feito recentemente na Camara de Lisboa, sobre S. Vicente, patrono da cidade, a alegria e o consolo que é saber quando vem a Lisboa. Podia. Tanta recordação que é outra maneira de dizer privilégio.

Só nunca agradecerei de mais. Faltará sempre mais um obrigado. Parabéns pelo Prémio. Fernando Pessoa merece-o a si. Ficam quites.

Esta crónica semanal, vai passar por um certo período de tempo, a crónica… intermitente. Aparecera de vez em quando, compromissos inadiáveis irão ocupar-me por algumas semanas. Até breve! Com esperança para 2024 (se não for ela…).