1António Costa não viu qualquer problema em trabalhar sem contrato com o seu melhor amigo Diogo Lacerda Machado na gestão de dossiês públicos muito relevantes que mexem com centenas de milhões de euros (TAP, lesados BES e BANIF, entre outros) — e só muito a contragosto lá aceitou que se fizesse um papelinho em que ficavam reguladas as obrigações e os deveres do advogado Lacerda Machado. Costa também nunca percebeu muito bem a razão da polémica do caso family gate quando um casal (Eduardo Cabrita/Ana Paula Vitorino) e um pai e filha (José Vieira da Silva/Mariana Vieira da Silva) se sentavam no Conselho de Ministros por si liderado para apreciarem a legislação de uns e outros — teimoso, só reconheceu a validade das críticas quando a seguir às eleições, deixando Ana Paula Vitorino e José Vieira da Silva foram do atual Governo.
E agora resolveu ‘contratar’ António Costa Silva como seu conselheiro pessoal para construir um plano de reconstrução económica para os próximos 10 anos. De acordo com declarações do próprio à RTP, foi convidado a 24 de abril e desde essa altura acompanhou o primeiro-ministro em reuniões com empresários e já está a trabalhar com os diferentes ministros. Tudo como “mero cidadão” e em regime “pro bono” — termos que Costa Silva empregou em declarações ao Eco e que foram confirmados oficialmente pelo gabinete de António Costa.
O embrulho é bonito mas compra quem quer — e eu, confesso, que não compro porque há aqui uma sensação de déjà vu com a opacidade do caso Lacerda Machado.
2 Toda esta história revela uma atração inexplicável (e preocupante) de António Costa pela informalidade e por trapalhadas. É importante não esquecer que António Costa Silva é presidente executivo de uma petrolífera chamada Partex — sociedade que foi vendida pela Fundação Calouste Gulbenkian em novembro de 2019 por 555 milhões de euros a uma empresa pública tailandesa chamada PTE Plus para ser “uma plataforma de crescimento da PTTEP no mundo”, de acordo com as palavras do próprio Costa Silva.
Portanto, um gestor de uma empresa detida por capital público tailandês vai ajudar a definir os setores de atividade onde o Estado português irá investir de forma estrutural nos próximos 10 anos. Pelo meio, terá acesso único a todos os segredos do Governo sobre futuros investimentos públicos. Tudo, e tal como já tinha acontecido com Lacerda Machado, sem que exista até ao momento um contrato formal que imponha obrigações e deveres — uma questão que deveria ter sido logo tratada, até porque Costa Silva não está abrangido por qualquer regime de incompatibilidades.
Não sei se há aqui uma atração especial de António Costa pelo nacional porreirismo — que tão bem caracteriza uma parte da cultura portuguesa. O que sei é que o Governo não se pode reger pela informalidade. Pelo contrário, os formalismos devem ser sempre a palavra de ordem na gestão dos negócios públicos, sob pena de se criarem relações opacas e zonas cinzentas que impedem o escrutínio e põem em causa a transparência — uma palavra-chave de qualquer sistema democrático digno desse nome.
De acordo com Luís Marques Mendes, os formalismos só serão concretizados nos próximos dias com emissão de um despacho do primeiro-ministro a nomear formalmente António Costa Silva como seu conselheiro. Tarde e a más horas, como aconteceu com Lacerda Machado.
3 Isto não augura nada de bom para a gestão dos cerca de 45 mil milhões de euros Portugal deverá receber até 2027 da União Europeia (UE), caso a proposta da Comissão Europeia seja aprovada pelos estados-membros. O valor foi confirmado pela comissária Elisa Ferreira ao Expresso e resulta da soma das verbas do Fundo de Recuperação (15,5 mil milhões a fundo perdido) com as que já estava previstas no Quadro Financeiro Plurianual (entre 29 a 30 mil milhões de euros). Se somarmos ainda os 10,8 mil milhões de euros previstos em empréstimos, podemos estar a falar em cerca de 55,8 mil milhões de euros.
Só para termos uma noção da grandeza: Portugal teve direito a 96,1 mil milhões de euros de fundos estruturais e de coesão da UE entre 1989 e 2013 através de quatro quadros comunitários de apoio (1). Em muito menos tempo, chegará metade desse valor.
O PS, que sempre desvalorizou o sucesso económico dos Governos do PSD de 1987 a 1995, tem aqui uma oportunidade histórica para demonstrar que consegue fazer melhor. Eu, que não tenho ilusões sobre o imobilismo estratégico dos socialistas, nem lhes vou exigir que reformem o país de alto a baixo como fez Cavaco Silva. Já me contentaria que apresentassem resultados de crescimento económico e do poder de compra minimamente semelhantes mas estou em crer que nem uma vela gigante em Fátima conseguirá ajudar António Costa.
De uma coisa, contudo, não abdicarei: que a utilização desses fundos europeus seja muitíssimo mais eficaz na década de 2020 do que foi entre 1989 e 2013 e que o enriquecimento fácil de muitas figuras ligadas ao PSD e ao PS não se repita agora com outras caras.
Se a sociedade civil não for exigente para com os seus representantes, se o próprio Estado não tiver regras apertadas de accountability, se a Justiça não tiver os meios financeiros e humanos para investigar as inevitáveis irregularidades que irão surgir, então acreditem que voltaremos a cometer os mesmos erros do século passado.
Por isso mesmo, a exigência tem de começar já.
(1) “25 Anos de Portugal Europeu – A Economia, a Sociedade e os Fundos Estruturais” (Fundação Francisco Manuel do Santos, 2013)
Texto alterado às 10h21
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