A derrota irreversível da Rússia de Putin é o resultado que interessa ao Ocidente e que, por enquanto, a Ucrânia está disposta a procurar.

Para perceber como pode acabar a guerra é preciso perceber o que cada uma das partes envolvidas quer no fim do combate.

Khyiv quer poder existir. Os ucranianos querem poder escolher livremente o seu destino. Mas querem, antes disso, sobreviver. É por ser existencial que continua a haver tantos ucranianos disposto a morrer pelo seu país. Precisamos de perceber isto para compreender até onde estão dispostos a ir.

Michael Meyer Resende, um alemão a viver em Portugal director do Democracy reporting international, regressou há dias da Ucrânia.  Num artigo publicado no Euobserver, explica com uma clareza cristalina o que move os ucranianos. “A maioria dos ucranianos vê o conflito como uma guerra de sobrevivência para sua nação. Eles vêem isto através das lentes da repressão russa à nacionalidade ucraniana no século XIX e do assassinato de milhões de ucranianos por Stalin no Holodomor, a fome em massa da década de 1930.” É necessário compreender isto para perceber porque estão dispostos a morrer.

No mesmo artigo, Meyer Resende recorda o que quem tem acompanhado as posições dos países bálticos e da Polónia sabe: para uns e para outros, esta guerra só não é na sua terra porque estão do lado de cá da fronteira da União Europeia e da NATO. Não fora isso e, estão perfeitamente convencidos, os próximos eram eles. “Não é surpresa que os polacos apoiem Ucrânia de forma tão esmagadora. Eles experimentaram traumas semelhantes da Rússia e da Alemanha. E o mesmo para os países Bálticos”, explica Meyer Resende. É por isso que Estónia, Letónia, Lituânia e Polónia foram, especialmente no começo da guerra, a vanguarda da posição europeia. E não admira, também, que os olhos estejam todos postos na Alemanha. Não é só por ser mais rica e influente que França, que é. É também porque há aqui reencontros com a História e contas por acertar. É sobretudo por isso que, em especial no Centro e Leste da Europa, se está mais atento a Berlim do que a Paris, que não tem sido nem mais generosa nem mais empenhada.

E o Ocidente, a começar pela União Europeia, quer o quê desta guerra? A derrota e afastamento, ou pelo menos a neutralização, de Putin e da ameaça que representa. Biden, aliás, disse isso nos primeiros dias da guerra, quando foi à Polónia. Não foi gaffe nenhuma.

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Putin é um autocrata, mas isso não é razão suficiente para o Ocidente em geral, e a Europa em particular, o querer ver partir. Mais precisamente, um autocrata agressivo e expansionista. Acontece que o que não falta no mundo são autocratas agressivos. Alguns com os quais até somos capazes de viver bastante bem, quando é preciso. O problema é que Putin é nosso vizinho. Da Polónia, da Estónia, da Letónia e da Lituânia. E, além disso, é um actor presente, activo e hostil em muitas partes do mundo onde temos, em especial os europeus, muitos interesses.

Ao contrário do que é repetido pelos apaziguadores e pelos adeptos da tese de que a Rússia tem direito a um espaço de influência onde pode impor regimes não democráticos, Moscovo não tem razão para se queixar de como foi tratada pelo Ocidente no fim da Guerra Fria. Pelo contrário. E o grande erro foi esse. Por regra, no fim da guerra os derrotados reformam-se. E quando causaram enorme prejuízo moral, como foi o caso da Alemanha ou do Japão na IIª Guerra Mundial, criam-se regras e instituições para que o mesmo mal não volte a acontecer. Foi isso que não aconteceu no fim da Guerra Fria. E foi um erro.

Por temer o que seriam as consequências da desintegração abrupta da União Soviética, por preferir um mal conhecido e enfraquecido a um mundo em desordem, e por reconhecer que os Impérios contam, o Ocidente deixou a porta aberta para a Rússia entrar. A Parceria que Moscovo tinha com a NATO é uma das maiores provas dessa abertura. Tanto que, em tempos, Putin chegou mesmo a dizer, entre a ironia e a provocação, que se calhar a Rússia podia um dia aderir à Aliança Atlântica.

É esse erro que os ocidentais, os americanos e europeus, querem agora corrigir. Depois da Crimeia, da Geórgia, da manipulação ameaçadora da Bielorússia, e da guerra na Ucrânia, já não é possível manter a ilusão de que um Rússia iliberal, anti-democrática e poderosa é gerível e acomodável. Não é. E mesmo que não seja uma potência global, o seu alinhamento com a China é um perigo que não foi a reacção ocidental à invasão da Ucrânia que provocou. Já estava lá, na “amizade sem limites” que Putin e Xi Jinping celebraram poucos dias antes da guerra começar.

Enquanto os ucranianos estiverem dispostos a ser torturados e a morrer, e morrem muitos todos os dias, pelo seu direito a existir, o nosso interesse europeu em derrotar a ameaça russa está a ser defendido. É esse o objectivo do Ocidente nesta guerra. A nossa solidariedade com os ucranianos é moralmente corecta. É estar do lado certo da História. Mas também é do nosso mais puro interesse. Não há mal nenhum em reconhecê-lo. Pelo contrário. Se os europeus não perceberem o que está em causa, rapidamente vão dizer que a guerra acaba quando acabar o apoio aos ucranianos. E provavelmente têm razão. Mas não acabaria a ameaça. Isso, só com a derrota da Rússia de Putin. E esse trabalho sofrido são os ucranianos que estão a fazer. Por si próprios, mas por nós também.