Nisto da Grécia, as metáforas mitológicas são de grande utilidade: não explicam nada mas ilustram bastante, mantendo-nos um registo essencialmente grego – onde o divino mágico intervém sempre que necessário e resolve os problemas dos humanos com um toque de varinha mágica ou poderes sobrenaturais.
Vem isto a propósito das primeiras medidas tomadas – e das anunciadas – pelo novo governo grego, que continuam a ser comentadas das mais diversas formas por analistas, pelos mercados (os comentários dos mercados surgem sob a forma de indicadores bolsistas ou de taxas de juro da dívida), governantes e decisores.
Não pretendo acrescentar mais um punhado de frases à discussão e muito menos alimentar a especulação. Seria inútil e, na escala micro em que me situo, mais não faria do que adensar a confusão e a demagogia. Em resumo, não serviria para nada. Ficam apenas algumas ideias feitas e um comentário sobre elas:
1 – “Há um braço de ferro com a Alemanha – parece mesmo que é só com a Alemanha – e alguém terá de ceder primeiro, sendo neste momento incerto quem será”. Ora o braço de ferro, se existisse, seria com a União Europeia e o FMI, já para não falar de cada um, ou pelo menos da maioria, dos 27 restantes Estados-membros, todos credores da Grécia. Mas não há qualquer braço de ferro, apenas um punhado de decisões que contrariam os compromissos que o anterior governo grego assumiu tendo em vista receber o apoio da odiada “troika” – isto é, o apoio de todos nós. Resta saber de que recursos disporá o governo grego, e até quando, para pagar as despesas decorrentes das medidas anunciadas (sabendo-se que, salvo acordo improvável nestas condições, a ajuda europeia poderá cessar em breve).
2 – “Com estas medidas, a Grécia põe fim à austeridade”. Esta é uma ideia que os mais fervorosos adeptos da revolução syriziana agitam com entusiasmo. Acabou a austeridade! É uma ilusão perigosa: a austeridade não acaba por decreto nem através de raios de Zeus generosamente lançados sobre a cabeça dos cidadãos helénicos. Acaba quando a economia grega, novamente (ou finalmente) competitiva, conseguir atrair investimentos, gerar recursos para proporcionar empregos à maioria dos seus cidadãos e pagar as dívidas.
3 – “O sofrimento do povo grego – indiscutível e sem dúvida inaceitável – e a evolução da situação na Grécia, prova que as receitas da “troikas”, plasmadas nos programas de resgate a que o país aderiu desde 2011 (condição do empréstimo de 240 mil milhões €!) -, são erradas”. Esta é uma das ideias mais fortes dos críticos da União Europeia (e do FMI): a austeridade não terá servido para nada. É outra ideia perigosa; a verdade é que o défice primário da Grécia, isto é, o resultado das contas públicas excluindo o pagamento dos juros (o chamado serviço da dívida), passou para um saldo positivo de 2,9% do PIB em 2014 (1,9 mil milhões €), sendo este o segundo ano em que isso sucede desde o início da crise. E pela primeira vez em sete anos, a economia grega cresceu. As perspectivas para 2015 são (eram?) mais positivas e o governo anterior tinha até já anunciada uma redução de alguns dos sacrifícios, com diminuição da carga fiscal como resultado justamente dos efeitos do programa da “troika”.
4 – “Como a Grécia tem agora um excedente orçamental primário, pode sair do euro sem consequências”. Este é, de todos, o argumento mais perigoso. E o que teria consequências mais dramáticas, como se refere aliás numa recente análise do Bruegel: em caso de saída do euro, o célebre grexit, o país entraria numa recessão profunda, denunciaria a dívida ou parte dela (aliás a principal razão para sair do euro) criando provavelmente um efeito sistémico, o desemprego aumentaria e reduzir-se-iam as receitas, regressaria de imediato o descontrolo orçamental e logo a necessidade de… novas medidas de austeridade. Dependendo em parte do que sucedesse com a pertença grega à União – convém recordar que nenhum país pode ser expulso do euro ou sequer dele fazer secessão, ainda que possa sair da União por vontade própria – o país perderia igualmente acesso aos fundos estruturais, já para não falar do quase certo banimento do mercado da dívida. A descida aos infernos dos últimos anos, de que a Grécia vinha finalmente emergindo, tornar-se-ia uma queda descontrolada.
Ironia do destino: se o novo governo grego pode anunciar medidas de redução da austeridade invocando (como invoca) a margem orçamental – do orçamento primário – é porque ela existe e foi proporcionada pelo programa de austeridade e pelo violento esforço do povo grego nos últimos anos. E se até a hipótese de saída do euro, subtilmente (?) brandida pelos novos responsáveis do país como ameaça subliminar nas negociações que agora se iniciam, é credível, isso sucede graças a ter havido essa recuperação, ao contrário do que dizem tantos comentadores (e partidos políticos) por essa Europa fora.
Insisto no que tenho dito: há uma oportunidade real de abordar o verdadeiro problema europeu, o das dívidas soberanas europeias, de modo integrado e solidário. Isso deve ser feito em conjunto pelos países devedores e pelos credores, numa lógica de integração que é própria de uma União Económica e Monetária crescentemente consolidada. Essa oportunidade foi aliás despoletada pela eleição do Syriza. Mas esticar a corda e alimentar as ideias feitas que abordo não é a melhor forma de garantir sucesso a essa oportunidade histórica, podendo antes comprometê-la de forma irremediável.
Seria uma pena. O caminho para Ítaca é longo e cheio de perigos (como escreveu o poeta grego Kontantino Kafavis) mas há que vivê-lo bem e nunca esquecer o destino. Radicalizando-se como parecem ameaçar (talvez não seja bem assim), Tsipras e os seus improváveis parceiros do ANEL guiarão os veneráveis helénicos e com eles todos os europeus para um ostracismo qualquer, afogando pelo caminho no Styx os sonhos e aspirações de várias gerações. Será o fim da visão de uma Europa em paz, próspera e competitiva, no mundo de amanhã.
Desculpem o excesso de mitologia, mas é só do que sou capaz neste momento.
INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS – UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA