Tiro o chapéu ao Estado português. A façanha que está prestes a realizar não é para qualquer um. Se organizar uma festa surpresa e mantê-la escondida do celebrado já é difícil, imagine-se a complicação que é prepará-la em segredo também dos convidados, convencendo que não vai ser realizada. É o que o Estado está a fazer com as comemorações dos 500 anos de Camões. Daqui a uma semana vamos todos apanhar um susto quando o Estado gritar “surpresa!” e soltar os balões e confetis que já devem estar prontos.

Até agora, o disfarece está perfeito. Em 2021 o Governo aludiu aos festejos, até 2022 ficou de gizar um plano, adiou-se para 2023, no fim desse ano atamancou-se qualquer coisa que era suposto ter sido apresentada há 15 dias e moita. Parece mesmo uma daquelas comemorações que começa com planos de um baile de máscaras para 1200 convivas e acaba por ser uma cerveja ao fim da tarde com 3 amigos – talvez com o 4.º a passar lá mais tarde, se o treino de padel não se prolongar.

Obviamente, o Estado está a fingir que não vai haver festa. Tratando-se de Camões, o poeta nacional que partilha o dia com o do próprio país, as comemorações têm mesmo de existir e o que o Governo está é a acastelar a ilusão de negligência para depois o assombro com a festança ser ainda maior. “Ah! Como é que fez isso? Como é que não vimos as bebidas a chegar? As decorações? A cabine do DJ? Como é que ninguém se descaiu?”, perguntaremos com pasmo enquanto colocamos no olho a pala distribuída à porta por hospedeiras mascaradas de Leonores, descalças com potes na cabeça, testos nas mãos de prata, cintas de fina escarlata e sainhos de chamelote, tudo a rigor.

A não ser, claro, que as más línguas tenham razão e não haja festa nenhuma – ou, a haver, seja pífia. As más línguas atribuem uma motivação política a este desleixo e consideram que o Estado despreza propositadamente o quinto centenário de Camões. Fá-lo, dizem, porque o poeta ousou cantar a página mais negra da história de Portugal, os Descobrimentos. Aliás, não só cantou como participou na sem-vergonha, de África e de Ásia andou devastando, engatou cativas, e contribuiu para a desprezível colonização. Celebrar Camões é, de certa forma, caucionar o eurocentrismo, a supremacia branca e o próprio fascismo. Quem gosta de Camões vota Trump e não apoia a Palestina. Não é por acaso que a sua obra maior tem o nome de um maléfico grupo de saúde privado.

Camões caiu em desgraça. Para reabilitá-lo vai ser preciso esperar pela próxima geração de camonianos que reinterpretem o trabalho do poeta à luz de uma ideologia aceitável. Por exemplo, considerando o “passaram ainda além da Taprobana” não como elogio da bravura, mas como acto de loucura. “Passaram” não como “transpuseram” mas como “ensandeceram”. “Passaram-se e tiveram a lata de invadir ainda mais terras, esses esclavagistas de uma figa”.

Não é impossível que isso aconteça. O entendimento que temos de Camões muda ao longo do tempo. E não são precisos séculos para isso se dar. Em 1995, o país inteiro fartou-se de gozar com o então Primeiro-Ministro, Aníbal Cavaco Silva, por não saber quantos cantos tem Os Lusíadas. (Tem 10, fui agora verificar à Wikipedia). Ui, o que a gente se riu do rústico! Sabia muito de economia, mas nada de poesia. Não queria saber de Camões, só de cifrões. Via-se mesmo que era de direita, essa seita filistina. Felizmente, somos hoje um país menos elitista e o desconhecimento de Cavaco passaria agora despercebido – se não fosse mesmo elogiado. Há 30 anos era um escândalo haver um político que ignorasse a obra de Camões; agora é indiferente que todos os políticos ignorem o próprio Camões, quanto mais a obra. Em três décadas, Camões passou de poeta mal dito a poeta maldito. Mais uns anos e chega a interdito.

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