Desde o início de década, o contexto e as circunstâncias, devem levar-nos a repensar e a recalcular todo o edifício construído. A readaptarmo-nos. A tornarmo-nos flexíveis e atentos. Por exemplo, o recente e agudo (e grave, acrescentamos nós) processo de “financeirização” de um bem como a habitação (transformando-a numa fria e despida palavra, “activo”) torna a questão da habitação num problema e impacta directamente com a sua provisão e, particularmente, com o acesso à mesma.

É nos centros das cidades (e não apenas na sua parte patrimonial e histórica), onde o sector terciário teve, deixou de ter e recomeçou a ter crescente relevância, que a habitação sofre com as tendências de pressão do espectro do turismo e consequente alteração do perfil da população e do comércio local. A instabilidade instala-se. E, particularmente, instala-se no mercado de arrendamento pelos motivos anteriormente invocados.

Em Portugal, o mercado de arrendamento (público e privado) permanece letárgico e sem perspetivas de uma mudança estrutural. Sem ele, as cidades tornam-se menos justas e mais desiguais. Ao tornarmo-nos num país de proprietários a população residente revela uma inércia residencial que contrasta cada vez mais com a necessidade de uma maior mobilidade para fazer face às novas geografias do mercado de trabalho e às transformações que o modelo produtivo vem sofrendo. É, pois, no mercado de arrendamento que se joga(rá) muito do futuro da atratividade das cidades. Por exemplo, a modesta ambição de passar, em Portugal, o peso do arrendamento público de 2% para 5% (em Matosinhos, 2019, 5,3%) contrasta, salvaguardando as diferenças conceptuais dos modelos adotados por cada país, com o peso nos Países Baixos onde representa 30%, na Áustria com 24%, na Dinamarca 21%, no Reino Unido 17% e em França 16,5 %.

Mas não só o “mercado” de arrendamento público precisa de um novo impulso, o mercado de arrendamento privado carece de um novo dinamismo e de uma releitura séria dos modelos e das erráticas e confusas políticas públicas prosseguidas nos últimos anos. Parece hoje muito mais razoável que o incremento do arrendamento passe por uma simplificação tributária e favorável (para os proprietários e para os inquilinos) deste instrumento de política pública. Importa ainda relevar que o “mercado” de arrendamento público terá que se libertar do processo de estratificação que se instalou com a criação de arrendamento de primeira (acessível) e de segunda (apoiado) nos municípios portugueses. Os perigos aparentemente não são evidentes. A palavra ghetto foi para estas políticas determinísticas que foi inventada.

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Estamos, também, num período importante pelas recentíssimas estatísticas reveladas, para as quais não poderemos deixar de olhar com particular atenção e sentido crítico, por forma a que possamos conduzir de forma mais assertiva as políticas e estratégias que deveremos implementar nas cidades portuguesas. De facto, as informações reveladas pelo XVI Recenseamento Geral da População e pelo VI Recenseamento Geral da Habitação (Censos 2021) constituem, desde já, um momento singular e oportuno para reequacionarmos as políticas públicas e, particularmente, as políticas públicas de habitação.

Os Resultados Preliminares, recentemente divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), contribuem e ajudar-nos-ão a reposicionar e reconsiderar as políticas públicas perspectivando os tempos mais próximos. A singularidade demográfica portuguesa (um dos países do mundo com uma das mais baixas taxas de fecundidade) é um factor suficientemente preocupante para que não se deixe de encarar de frente o problema. Matosinhos não escapa a esta tendência. A ausência de reposição geracional, pela baixa natalidade e pelo envelhecimento da população (com o aumento da esperança de vida média) – o chamado “duplo envelhecimento” –, conduz e conduzirá a um esforço acrescido das finanças públicas, condicionando os investimentos públicos (e privados) que se perspetivam para as cidades portuguesas. Por exemplo, os equipamentos de apoio à infância, os equipamentos de ensino e os equipamentos de apoio para a terceira idade (saúde e geriatra) deverão merecer, naturalmente, uma atenção distinta em função dos indicadores demográficos e socioeconómicos que cada concelho revela.

Em Matosinhos, a perda de população é inferior (-1,6%) à perda de população do País (-2,1%) e relativamente mais baixa que a perda registada na Região Norte (-2,8%). Repare-se que à perda da população se contrapõe um aumento dos agregados familiares (+3,3%). Concomitantemente foram revelados os primeiros indicadores sobre a habitação que revelam a existência de uma perda singular de fogos habitacionais registada numa década, o que poderá indiciar, desde logo, uma maior pressão sobre a procura imobiliária. Poderemos, no entanto, especular que os processos de reabilitação do património imobiliário em curso conduziram a uma redução do stock habitacional pela adaptação e transformação dos fogos existentes, adequando-os às exigências de conforto contemporâneos. Será aqui, também, importante perceber como evoluíram os fogos devolutos ao longo da década (dados ainda não disponíveis) e qual a sua contribuição para as dinâmicas do mercado (do lado da oferta e da procura).

Refira-se, por último, que se espera que a redução da dimensão média das famílias, revelada por estes resultados preliminares, venha a conduzir, grosso modo, a uma provisão predominante no mercado da habitação das tipologias mais baixas (T1 e T2).

Acresce ainda, nos tempos correntes, o impacto que a pandemia provocou no modo de funcionamento das cidades e da habitação. As questões sanitárias e de saúde pública volta(ra)m a ser centrais nas discussões sobre o planeamento urbano e as políticas de habitação. É, também, particularmente perturbante o impacto, no curto e médio prazo, do conflito na Ucrânia nomeadamente na área do imobiliário residencial.

É perante estes desafios urbanos, sociais e demográficos que a integração das políticas públicas concorre para que melhores soluções para o território sejam definidas e, particularmente, que as políticas e estratégias de habitação se revelem mais adaptativas e flexíveis para enfrentar as tendências mais recentes. Nesse contexto, a Nova Geração de Políticas de Habitação, a Lei de Bases da Habitação, o Programa Nacional de Habitação e, particularmente, a Estratégia Local de Habitação poderão constituir-se como elementos centrais na orientação e na aplicação das políticas públicas com vista à resolução de um dos problemas capitais nas cidades contemporâneas, a habitação. E, por consequência e desta maneira, tornar as cidades portuguesas mais equilibradas e justas.