I. A culpa da derrota

A culpa foi de Joe Biden, que desistiu tarde e só quando já era impossível esconder a demência que toda a gente via há anos e alguns apenas admitiram dez minutos antes.

A culpa foi do Partido Democrata, que não preparou devidamente a sucessão de Biden como desde anteontem era óbvio que tinha de preparar.

A culpa foi de Kamala Harris, um embaraço ambulante excepto durante o período, de 21 de Julho a 6 de Novembro, em que se decretou o portentoso brilhantismo da senhora.

A culpa foi dos homens, uma cáfila desordenada que votou no candidato que quis e não na candidata que sujeitos esclarecidos, maioritariamente homens, recomendaram.

A culpa foi dos homens brancos, que ao contrário do que os especialistas, maioritariamente homens brancos, gostariam, existem.

A culpa foi dos homens negros, que descuraram o saudável e ancestral paternalismo e preferiram os republicanos mais do que é costume.

A culpa foi dos “latinos”, que são masoquistas ou surdos e não ouviram multidões aos berros a avisá-los de que vão ser deportados em massa.

A culpa foi dos índios, que são reaccionários e levam certos progressistas a secretamente lamentar que não estivessem extintos em 1890.

A culpa foi das mulheres, que em larga medida ignoraram os alertas – a cargo de peritos que acreditam que os homens menstruam – acerca da opressão prestes a cair em cima delas.

A culpa foi dos jovens, dado que, afinal, a ex-geração-mais-informada-da-História é estúpida a ponto de questionar os clichés retóricos que a tornavam a geração mais informada da História.

A culpa foi dos chalupas e esquisitos que vêem com desagrado as terapias hormonais e as mutilações genitais em menores de idade.

A culpa foi do legislador, que não proíbe o Twitter conforme defendem os amigos da liberdade de expressão.

A culpa foi das autoridades, que não deportaram Elon Musk a tempo conforme defendem os simpatizantes da imigração desenfreada.

A culpa foi de um sistema de representação inaceitável e de uma Constituição que é sagrada porém anacrónica, onde não se substitui o colégio eleitoral pelo voto popular e não se erradica o voto popular sempre que este não agrada.

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A culpa foi da exigência de um cartão de identificação nas urnas, obrigatoriedade racista inexistente em quase todos os estados em que o anti-racismo venceu.

A culpa foi das empresas de sondagens, que ao longo de meses leram impecavelmente a realidade até a noite eleitoral mostrar uma realidade diferente.

A culpa foi dos “snipers” patriotas que atentaram contra Trump, por padecerem de incompetência e não frequentarem as escolas de tiro que outros patriotas querem abolir.

A culpa foi dos eleitores desatentos aos conselhos políticos fornecidos por reputadíssimos artistas de variedades, os quais agora se sentem a obrigados a repetir o prometido em 2016 e fingir que fogem do país.

A culpa foi dos eleitores analfabetos que não lêem o jornalismo superior e isento do “New York Times”, do “Washington Post” e do “Público”.

A culpa foi dos eleitores boçais, que não ocupam os serões a consumir a CNN, a NBC e a Sic Notícias.

A culpa foi dos americanos, que sabidamente são ignorantes e se entretêm a brincar aos foguetões espaciais e à Inteligência Artificial em vez de, como a moderna e sofisticada Europa, inventarem maneira de prender as tampinhas às garrafas.

II. Quem ganhou

Quem ganhou as eleições americanas foram os deploráveis, os extremistas, os racistas, os privilegiados (bilionários dos negócios e vedetas de Hollywood à parte), o heteropatriarcado, os “negacionistas” disto e daquilo (os negacionistas da biologia não contam), os brancos, os castanhos, os misóginos (salvo os que conviviam com o sr. Weinstein), os tarados (salvo os que conviviam com o sr. Epstein), os pedófilos (salvo os que conviviam com o sr. Diddy), os brutos que não têm dentes, os brutos que não vão à universidade (testemunhar aulas sobre interseccionalidade e participar em manifestações a favor da “libertação” da “Palestina”), o ódio, as trevas, as alterações climáticas, o autoritarismo, os hispânicos mal-agradecidos, o esclavagismo (descontados os donos dos votos dos negros), o fascismo, o Sporting (que meteu quatro golos), a reencarnação de Hitler, a xenofobia, a homofobia, a transfobia e, acima de tudo, a coulrofobia (medo de palhaços).

III. Quem perdeu

Quem perdeu foram a democracia, a justiça, o sonho, a inteligência, a bondade, a generosidade, o altruísmo, a alegria, o riso, Kamala, o riso de Kamala, a decência, os dentistas, a humanidade, a comunidade LGBT+70 letrinhas, as pessoas equilibradas que choram a derrota em “directos” televisivos ou em vídeos no TikTok, o futuro, a luz, a esperança, os carros eléctricos (fora os da marca cujo nome não se pronuncia), a paz, a harmonia, o Manchester City, a solidariedade, a compaixão, a América, a Europa, o planeta, pelo menos cinco sistemas solares e um pedaço jeitoso da galáxia.

IV. O que fazer

Do que vejo por lá, e por cá, parece que o novo lema dos derrotados é “resistir”. “Resistir”, disse Kamala no discurso de despedida. E “resistir”, repetem os seus desconsolados acólitos. “Resistir”. A sério? Seria bom que resistissem a julgar-se iluminados. Seria bom que resistissem a sentir-se habilitados a ensinar alguém. Seria bom que resistissem a depreciar os que não pensam o que eles pensam. Seria bom que resistissem a avaliar a vida dos semelhantes pela vidinha que conhecem. Seria bom que resistissem à arrogância e à prepotência. Seria bom que resistissem à tentação de mandar em nós. Seria bom que resistissem ao tique de se achar democratas enquanto abominam a liberdade alheia. Seria bom que resistissem à propensão para fazer figuras intelectualmente ridículas e moralmente obscenas. Mas eles não resistem.