Foi uma coisa que veio progressivamente com a idade. Refiro-me à descoberta de que a maioria das pessoas, dispondo de alguma liberdade – isto é, podendo deliberar em privado e em conjunto sobre questões substantivas –, partilham, a maior parte das vezes, intuições morais justas. É claro que a cláusula da liberdade não é uma condição sine qua non das intuições morais justas – elas existem certamente em indivíduos que vivam sob regimes totalitários; não faltam exemplos, talvez até os mais salientes, disso –, mas certamente que o é do seu desenvolvimento e da sua difusão.

É mesmo, creio, uma generalização tão acertada quanto pode ser acertada uma generalização sobre a vida ético-política dos seres humanos. E ela sobrevive aos contra-exemplos que se podem extrair tanto de situações claramente patológicas – que são quase as situações normais em regimes políticos onde as condições da liberdade não se apresentam – como de casos onde a deliberação comporta erros de cálculo, o que acontece fatalmente com todos os indivíduos e em todas as sociedades. Nenhum destes contra-exemplos, por mais caracteristicamente poderosos que sejam, chega para infirmar a tese geral, mesmo que qualquer deles baste para condicionar a sua generalidade. Mas tal limitação, como disse, é partilhada com qualquer outra generalização sobre a dimensão ético-política da vida humana. Não é a excepção: é a regra.

Resta, é óbvio, saber o que se pode entender por “intuições morais justas”. Banalmente, são aquelas que assentam no respeito pelos outros, ou, dito de outra maneira, no reconhecimento da sua autonomia. Se preferirmos o vocabulário de um filósofo, as intuições morais justas são aquelas que decorrem do simples facto de considerarmos os outros não apenas como meios para a satisfação dos nossos desejos – o que, obviamente, na vida em sociedade eles também terão de ser –, mas, ao mesmo tempo, como fins em si, agentes morais que temos de respeitar. Não há intuição moral justa que não tenha por base tal consideração.

O que distingue as sociedades democráticas das sociedades autoritárias ou totalitárias é exactamente o elas assentarem nessa base. E o permitirem a denúncia dos casos em que essa base é posta em causa. A vida do dia-a-dia dá-nos inúmeros exemplos das duas coisas. Nos países mais livres, onde, por cultura e tradição, mais se preza a autonomia individual, mais (muito mais) exemplos do que nas democracias onde a liberdade é menor, é claro. Mas, desde que exista alguma liberdade, desde que a nossa capacidade deliberativa, tanto individual como colectiva, esteja estabelecida, tanto a base como a possibilidade de protestar contra a sua violação se encontram asseguradas.

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Isto, que vale para o dia-a-dia, vale ainda mais para as situações excepcionais. Porque é que, por exemplo, a invasão da Ucrânia por Putin gerou uma condenação tão unânime por parte dos regimes democráticos – e, inversamente, uma aprovação, tácita ou explícita, pelos regimes autoritários ou totalitários? Porque os primeiros partilham as tais intuições morais justas – e os segundos não. Os primeiros exprimiram sentimentos inequívocos de solidariedade com os ucranianos porque lhes reconheceram o direito à autonomia, individual e colectiva, que para si querem e de que eles próprios têm experiência em grau variável. Os segundos, não possuindo tal experiência nem a desejando, evitaram condenar a invasão, quando não a apoiaram declaradamente. O que se diz dos regimes vale igualmente para os cidadãos produzidos por esses regimes. Alguém que não sabe o que é a liberdade, não a pode desejar – nem para si, nem para os outros.

O que mostra bem o valor das tradições e nos leva a outro aspecto da actualidade. Refiro-me, é claro, ao extraordinário sentimento de simpatia para com Isabel II aquando da sua morte e ao interesse pelo complexo e milimétrico ritual visando a passagem do poder para Carlos III que se lhe sucedeu e que podia, por si só, ser objecto de um extenso tratado sobre a soberania e a representação política. A simpatia deve-se, em larga medida, não só às características pessoais de Isabel II, mas ao facto de, dada a longevidade do seu reinado, o seu tempo se confundir com o nosso tempo. E de, devido à natureza do seu cargo, ela não se ter visto envolvida nas acções que a actividade política necessariamente engendra e que promovem descontinuidades. Era uma pura continuidade e, por isso, uma pura duração que podíamos identificar com o sentimento de duração que sentimos face à nossa própria vida, que, como se sabe, também ela convive com a experiência de descontinuidades várias. Boris Johnson, por acaso, exprimiu isso muito bem. O ritual, por sua vez, visa igualmente o estabelecimento de uma continuidade, no plano impessoal da soberania, o que, sendo menos íntimo, não é menos fascinante.

Este segundo tipo de continuidade é politicamente importante. Porque num mundo político inteiramente constituído por descontinuidades, a deliberação deixa de fazer sentido. Porquê deliberar, com efeito, se tudo amanhã pode ser de uma maneira ou de outra? Se nada nos assegura que um certo número de condições, que podemos calcular, serão as mesmas? E se a deliberação se torna impossível, a liberdade, por arrasto, igualmente é impossível. Não há liberdade num mundo em que a contingência reina absolutamente, sem nenhum pano de fundo de necessidade.

É claro que há continuidades e continuidades, ou, se se preferir, tradições e tradições. Há tradições que, claramente, funcionam como um impedimento à deliberação, à inovação, à autonomia e à liberdade. A Rússia é, de resto, disto um bom e quase ininterrupto exemplo. A tradição, por si mesma, não é um valor mágico. Mas, como se sabe, a tradição inglesa – sinédoque para “britânica”, se se quiser – não é desse tipo. E a prova disso é que é a Inglaterra quem, dentro da Europa, mais ajuda – e ajuda naquilo que mais conta – os ucranianos na sua luta contra a barbárie de Putin e mais voz dá às intuições morais justas dos nossos sentimentos comuns.

Quanto àqueles que, no mundo democrático, adoptam, com mais ou menos truques verbais, uma posição pró-russa, que dizer? É um direito político inegável e intocável. Infelizmente, é igualmente uma prova incontestável que não partilham as intuições morais comuns de uma sociedade democrática. Em grande parte dos casos, de resto, nunca as partilharam.