Lacerda Sales não se recorda se reuniu com o filho do Presidente da República. Mas lembra-se de nunca ter falado com Marcelo Rebelo de Sousa sobre o caso das gémeas com atrofia muscular espinhal e o acesso ao tratamento com Zolgensma, tal como assegurou nunca o ter mencionado com António Costa. Primeira constatação: os lapsos de memória de Lacerda Sales são especialmente selectivos. Felizmente, há evidências que permitem reconstituir os factos. E as evidências apontam no sentido de que Lacerda Sales e Nuno Rebelo de Sousa terão efectivamente estado reunidos. Mais ainda, nos registos clínicos oficiais constam várias referências à interferência do antigo secretário de estado da Saúde: a primeira consulta para as gémeas terá sido marcada a seu pedido, como ontem confirmou uma auditoria. Até ao momento, o agora deputado reagiu apenas laconicamente: informou que não “marcou” qualquer consulta, sem confirmar se solicitou a sua marcação. Segunda constatação: Lacerda Sales adoptou a ambiguidade como estratégia comunicativa. Até à sua audição na Assembleia da República, requerida de forma potestativa pela IL, espera-se que o ex-governante consiga aceder à documentação solicitada e recuperar a memória, de modo que os seus esclarecimentos em sede parlamentar possam ser completos.

Esperança eventualmente vã, uma vez que, nas palavras de Lacerda Sales, as sedes próprias para prestar esclarecimentos sobre este assunto são o IGAS (Inspecção-Geral das Actividades em Saúde) e o DIAP (Departamento de Investigação e Acção Penal): “eu só responderei aos detalhes do processo em sede própria; em sede própria é o IGAS e é o DIAP, respeitando aquilo que são os poderes e os tempos da Justiça“. Terceira constatação: o antigo secretário de estado promove a habitual confusão entre Justiça e Política, para escapar ao escrutínio da sua actuação no Ministério da Saúde. Quem assiste do lado de fora não pode cair na armadilha: independentemente das implicações criminais que venham a ser apuradas, o comportamento de Lacerda Sales enquanto membro do governo justifica avaliação política — e, confirmando-se a sua intervenção, merece reprovação pública. Espera-se que, na audição parlamentar, Lacerda Sales não insista nesta sua tese.

Não quero desviar a atenção sobre o essencial. O país inquieta-se perante a suspeita de terem existido trocas de influências ao mais alto nível, com vista ao favorecimento no acesso à nacionalidade portuguesa e, depois, a um tratamento médico dispendioso e restrito. É justo que o faça. Mas não é suficiente. A nossa cultura democrática beneficiaria que igual inquietação se manifestasse perante a conduta de responsáveis políticos que, confrontados com suspeitas de práticas ilegítimas, se escudam em lapsos de memória, em ausência de documentação ou em ambiguidades para evitar responder a perguntas simples. Ainda mais quando esse lamentável comportamento surge sob a protecção do PS, cujos dirigentes ilibam Lacerda Sales e cujos deputados recorrem à maioria absoluta para impedir audições parlamentares. É a quarta constatação: o ataque às instituições democráticas não está apenas no favorecimento dentro do SNS, mas também na recusa da transparência e em dizer a verdade aos cidadãos portugueses. Seja de Lacerda Sales ou do PS, do princípio ao fim, este caso enfraquece a democracia porque quebra (ainda mais) a confiança da população nas instituições democráticas.

É sempre um triste espectáculo quando representantes eleitos se desdobram em manobras para evitar o esclarecimento público. É que isto já não é apenas sobre o caso das gémeas e do seu tratamento. Agora, é também sobre os mínimos da ética republicana e da prestação de contas. Lacerda Sales, que se refugia em ambiguidades e na Justiça para escapar ao escrutínio da sua actuação como governante, não está mais do que a denegrir as instituições democráticas.

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