A petição que solicita à AR que expulse Mamadou Ba do país está a ter um grande impacto nos pais de família portugueses. Em mim teve, na medida em que me fez lembrar as birras dos meus filhos. Especialmente, quando vêm a chorar para fazer queixinhas e exigir castigos para os irmãos. Ainda bem que as petições são electrónicas. Se esta fosse apresentada em papel, vinha toda manchada de lágrimas. Há 100 anos, quando uma pessoa se sentia ofendida por outra, lavava a honra com sangue. Agora, os ofendidinhos lavam a honra com ranho. (Entretanto, houve um tempo em que as ofensas não sujavam. Saudades!) Aposto que, quando cantam o hino em vez de “Às armas! Às armas!”, cantam “Ao cancelamento! Ao cancelamento!” Que grandes choninhas. Assoem-se, pá.
Não deixa de ser curioso que uma iniciativa civilizada, que consiste em recolher assinaturas de cidadãos para requerer algo educadamente, seja usada para uma solicitação tão grosseira. É como chegar ao pé de alguém e pedir: “Boa tarde, peço desculpa por maçá-lo. Por obséquio, se não for incómodo, gostaria de requisitar as suas costas, para que possa – nas vértebras onde lhe for mais conveniente, claro – aplicar duas ou três pauladas. Com todo o respeito. Desde já, muito obrigado.”
É estranho que a acusação de que Mamadou Ba ofende os valores da Nação venha de quem parece não os conhecer. Se conhecessem, saberiam que os valores da Nação proíbem que aquilo que peticionam possa acontecer. Como o meu filho que chora por não querer que o Sol se ponha, para não ter de ir dormir, estão a pedinchar algo que, tecnicamente, não pode acontecer.
Mamadou Ba é português e, como tal, não pode ser deportado. Para onde se deportaria Ba? Para o seu país de origem? Seria abrir um precedente perigoso. Se Portugal começar a deportar cidadãos para o sítio de onde vieram fisicamente, nada impede que, um dia, comece a deportá-los para o sítio de onde vieram mentalmente. Como é que as gentes do Alabama de 1950 reagiriam à chegada súbita de milhares de Portugueses de 2021 que se identificam com as ideias que nasceram lá?
Para fazer face a esse impedimento, o Chega propôs uma alteração à Lei da Nacionalidade, prevendo situações em que quem tem dupla nacionalidade possa perder a portuguesa. É natural que André Ventura considere que isso é possível. Ventura é alguém que tem duas caras em vários temas, usando a que lhe dá mais jeito consoante a ocasião. Deve achar que a dupla nacionalidade se descarta com a mesma ligeireza.
Mamadou Ba é tão português quanto eu. Temos cores diferentes, origens diferentes, opiniões diferentes, mas a cidadania é a mesma. Somos ambos cidadãos de Portugal, unidos por uma História comum. Como diariamente nos lembram, todos os Portugueses descendem de alguém que beneficiou com o iníquo comércio de escravos. É impossível que um qualquer antepassado meu não tenha ido a África buscar escravos; e é igualmente impossível que não tenha sido um qualquer antepassado de Mamadou Ba a capturá-los e a vendê-los.
É que Ba nasceu no Senegal, uma das regiões de onde os Portugueses traziam escravos. Se nas Américas estão os descendentes de escravos daquela área, em África estão os descendentes dos africanos que aprisionavam inimigos de outras tribos e os vendiam aos Portugueses como escravos. É provável que um avô Quintela tenha feito negócio com um avô Ba. Os nossos avoengos eram sócios. O meu era retalhista, o dele fornecedor. Ba & Quintela, Lda. Une-nos mais do que nos separa.
Tenho noção de que o que acabo de escrever é inaceitável. Pelos padrões actuais não se pode, nunca, insinuar que há negros que fazem parte das chamadas estruturas de poder racistas. Esta semana, num debate na TVI, Joana Cabral, dirigente do SOS Racismo, afirmou que está cientificamente provado que não pode haver negros racistas. E a ciência é para respeitar! Sucede que, há dias, Mamadou Ba disse que Marcelino da Mata era fascista. No entendimento vigente do “fascismo” – sobretudo na corrente em que Ba e o SOS Racismo se inserem – um fascista é, por inerência, um racista. Significa que, sendo Marcelino da Mata negro, afinal há negros racistas.
É possível que Joana Cabral discorde. Mas, ao fazê-lo, estará a discordar de Mamadou Ba. Ora, sucede que Joana Cabral é branca. Como postula a Teoria que ela subscreve, em questões de decidir o que é ou não racismo, os negros é que sabem. Ou seja, ou Joana amocha, ou diverge abertamente de Ba, apoiando-se na ciência (uma criação do Ocidente branco) para dizer a um homem negro o que ele pode ou não pode ser. Isso é tão racista.
Portanto, se um negro – que é quem decide o que é racismo – diz que outro negro é racista – apesar de ser impossível haver negros racistas – estamos perante um berbicacho. A impossibilidade de haver negros racistas, conjugada com a autoridade máxima de negros em questões de racismo, coloca-nos perante o Paradoxo do Negro Racista, também conhecido como o Paradoxo da Seriedade Conferida a Uma Teoria Ilógica Que Não Faz Qualquer Tipo de Sentido, Mas Faz Doer a Cabeça.
Mas isso agora é irrelevante. O que interessa é que, neste país, não deportamos Portugueses. Muito menos por delito de opinião. Portugal é uma democracia desde 25 de Abril de 1974, quando um grupo de oficiais revoltosos derrubou o Estado Novo. Eram militares corajosos, temperados por anos de guerra em… África. Ups. Cala-te, boca. Não queremos que os anti-racistas, de repente, descubram que vivem num regime instaurado por militares que combateram africanos na Guerra Colonial. Ainda querem acabar com a Democracia, por ter sido fundada por opressores racistas. Afinal, só na metrópole é que as armas tinham cravos. Pelo sim, pelo não, se fosse à PSP de Santarém montava guarda à estátua do Salgueiro Maia, não vão aparecer activistas a querer pichar “supremacista branco!” na chaimite. Ui, o que fui lembrar! A chaimite deve o nome à povoação moçambicana onde Mouzinho de Albuquerque prendeu Gungunhana. Caraças, quanto mais escrevo, mais o 25 de Abril fica racista. É melhor terminar por aqui.