Os farmacêuticos são intervenientes-chave no sistema de saúde, principalmente nas áreas do medicamento e dispositivo médico, e do laboratório clínico, o que os coloca numa posição estratégica no que diz respeito à integração de cuidados. Contudo, e não obstante serem responsáveis pela gestão de cerca de 25% do orçamento do Serviço Nacional de Saúde (o que torna a sua acção fundamental para a sustentabilidade do sistema), a sua participação no desenvolvimento de políticas públicas tem sido sistematicamente menorizado.

Os sucessivos decisores políticos têm olhado para os farmacêuticos mais em função do seu número (cerca de 16.000 em actividade), como contingente eleitoral minoritário, do que pelo benefício da sua intervenção (aliás, medido em diversos estudos académicos e independentes) para o bem-estar dos cidadãos. Junta-se ainda o lugar-comum de considerar os farmacêuticos, na sua maioria, como pequenos proprietários de farmácia, o que não tem qualquer adesão à realidade actual, em que mais de 80% dos profissionais são trabalhadores por conta de outrem, englobando os sectores público, privado e social.

Partindo destas percepções maioritariamente equivocadas, a que se junta o contexto político interno do momento, e um complexo panorama internacional, torna-se necessário reflectir e agir em conformidade com a realidade dos factos, em várias frentes:

1. Prioridade à prestação de cuidados de saúde e bem-estar nas políticas públicas. 

Passar dos discursos à tomada de decisão, partindo de uma abordagem one health, que garanta a sustentabilidade e a maior eficiência da intervenção farmacêutica, aproveitando os seus saberes e competências nas vertentes da saúde humana, animal e ambiental, privilegiando a promoção e literacia em saúde, ao invés do foco na doença.

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2. Garantia da segurança das pessoas com doença.

Através do envolvimento das associações representativas e salvaguardando o bom uso das tecnologias de saúde e a equidade no acesso, assegurar maior transparência nos processos de avaliação económica e simplificação dos processos administrativos, bem como a promoção de um circuito de farmacovigilância robusto.

3. Investimento nos trabalhadores farmacêuticos.

É necessário corrigir de forma emergente a discriminação remuneratória e a exclusão legal dos farmacêuticos das equipas dos centros de responsabilidade integrada, apoiando sem reservas a especialização por via da residência farmacêutica e clarificando o conteúdo funcional da sua carreira, criando condições de atracção de profissionais num contexto de carência a nível europeu.

4. Definição de uma carteira clara e abrangente de serviços farmacêuticos.

A carteira de serviços a definir deve ser contratualizada e financiada, com base nos resultados em saúde esperados e obtidos, nas áreas do medicamento e do laboratório, para as diferentes tipologias de cuidados: desde as unidades da comunidade (privadas e públicas) até às unidades de prestação de cuidados a longo prazo (unidades de cuidados continuados e estruturas residenciais para idosos), sem esquecer as unidades (e, quem sabe, sistemas) locais de saúde.

5. Sistemas de informação fiáveis e funcionais.

Sendo a interoperabilidade o objectivo último, mas dificilmente alcançável a curto prazo, não se deve deixar de resolver, sem tergiversações, as condições de acesso e registo dos farmacêuticos no processo clínico do doente, bem como a sua comunicação com a restante equipa de prestação de cuidados.

6. Atracção de investimento na área farmacêutica.

É fundamental promover um ambiente favorável à inovação, nomeadamente ao nível dos ensaios clínicos e de nichos da indústria farmacêutica, através das necessárias parcerias, a nível nacional e internacional.

7. Prevenção da escassez de medicamentos e outros produtos de saúde.

Dando prioridade à autonomia de produção industrial, não se pode excluir a diversificação de mercados de aquisição e, em alguns casos, a produção de medicamentos manipulados de forma mais abrangente.

8. Abertura à cooperação internacional.

Como noutras áreas, o domínio da cooperação e diplomacia em saúde constitui um instrumento fundamental de partilha de boas práticas no campo da profissão farmacêutica, de estabelecimento de redes de contacto e de criação de oportunidades de negócio.

9. Respeito pela autonomia profissional.

Independentemente das alterações realizadas ao estatuto das associações públicas profissionais e do posicionamento de estruturas sindicais, que devem consolidar a sua relevância nos debates da profissão, é imprescindível que os decisores compreendam e respeitem a especificidade da ars pharmaceutica como profissão científica, em que o serviço prestado se baseia no conhecimento (que confere valor acrescentado aos actos praticados) e não na mera cedência de medicamentos ou realização de exames analíticos.

10. Diálogo com as escolas farmacêuticas.

As mudanças na prestação de cuidados exigem uma alteração profunda das práticas no ensino pré e pós-graduado, que terá de aprofundar, necessariamente, a sua ligação à prática profissional, ao desenho de políticas públicas e à intervenção cívica.

Não há, recorrendo à linguagem farmacológica, panaceias universais nem formulações miraculosas. Todavia, e sem prejuízo das diferenças ideológicas e políticas entre os actores da cena política democrática, seria de todo útil discutir seriamente o que pretende a sociedade do farmacêutico (e não da imagem caricatural que dele persiste), como profissional a quem estão cometidas especiais responsabilidades técnico-científicas, éticas e deontológicas. Pode haver caminhos diferentes, mas certamente que será possível definir algumas prioridades comuns. A bem dos cidadãos e dos cuidados que lhe são prestados.