1 O presente ano de 2021 marca o centenário da elevação das Escolas de Farmácia à categoria de Faculdades, com plena autonomia, em Janeiro de 1921, culminando uma evolução de séculos. Contudo, tendo sido um marco relevantíssimo, não se pense que foram cem anos de progresso linear. Na verdade, só após 1974 se reúnem condições favoráveis para que o ensino das Ciências Farmacêuticas conheça uma profunda reforma.

Em 1978, estrutura-se a licenciatura com um tronco comum de três anos e um segundo ciclo de dois anos organizado em três ramos: Farmácia Comunitária e Hospitalar; Análises Químico-Biológicas; Farmácia Industrial. Conciliava-se, de forma inovadora à época, uma formação científica básica de qualidade com uma formação pré-graduada especializada, conducente a satisfazer as necessidades do mercado de trabalho.

Depois, por força da adesão à então CEE, torna-se necessário harmonizar a estrutura do curso, regressando o percurso formativo único de cinco anos, com um estágio no sexto ano. Esta estrutura mantém-se, mesmo com a abertura de novas faculdades (públicas e privadas); e persiste, inclusivamente, no momento da adequação ao Processo de Bolonha, cuja única alteração significativa (em sentido negativo, diga-se) é a redução do curso para cinco anos, em sentido contrário às recomendações nacionais e internacionais.

2 É, assim, urgente, reflectir se os actuais Mestrados Integrados em Ciências Farmacêuticas são úteis na resposta aos desafios colocados aos sistemas de saúde. Comece-se por afirmar a base científica (e não apenas tecnológica) da profissão farmacêutica, o que implica adesão à realidade e rigor epistemológico. Partindo de um conhecimento sólido, o farmacêutico utiliza-o para centrar a sua atenção no medicamento… ou no utente?

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Parece estar-se perante um desajuste em que a intervenção técnico-científica do farmacêutico não é tangível pelos cidadãos. As formações técnicas têm vindo a substituir as formações de base científica e estas têm vindo a adaptar-se ao desempenho técnico. Potencial conclusão: não há necessidade de farmacêuticos e, por conseguinte, de instituições que os formem. Desta forma, quais os atractivos e compensações da profissão que se apresentam a um candidato ao ensino superior? Não deveria ser um sinal de alerta a contínua descida da média de entrada no curso (sem aumento do numerus clausus)?

3 Nos últimos anos, a quantidade de produção científica realizada por farmacêuticos teve um incremento significativo. Todavia, que reflexo tem na prática profissional? E o exercício profissional reflecte-se na prática investigativa? Existe transferência de conhecimento? Para quem? É preciso dizê-lo claramente: existem enormes deficiências formativas nos farmacêuticos portugueses (especialmente os comunitários, que representam a maioria da profissão), concomitantes com excessos de formação desnecessária, com o resultado nefasto de uma reduzida diferenciação relativamente a outros profissionais.

Emergem, então, velhas perguntas sempre renovadas: os planos de estudo são os adequados, o seu ritmo de actualização pertinente, e a sua avaliação eficaz? A formação pré-graduada deve contemplar um ciclo único de formação? Que capacidades têm as instituições de ensino para o organizar?

4 Resulta daqui outra questão: quem são hoje os professores de Ciências Farmacêuticas? São, maioritariamente, pessoas que não tinham esta área como primeira opção. Ou seja, as pessoas que corporizam hoje os processos formativos não têm a motivação necessária para o desempenho das suas funções e, para além disso, não sabem compreender nem antecipar as necessidades que a sociedade e a profissão têm e virão a ter.

É assim fácil compreender porque não se conseguiu estruturar um modelo clínico de ensino farmacêutico em Portugal, pré e pós-graduado. Como é possível continuar a aceitar que não haja uma formação prática e sistemática nas diferentes áreas de actividade farmacêutica na pré-graduação? É aceitável que a maioria dos professores nunca tenha exercido de facto a profissão? Será admissível que as faculdades nunca se tenham interrogado acerca do reduzido número de farmacêuticos prestadores de cuidados de saúde que realizam formação pós-graduada? Isto para não falar da (quase) nula integração das Faculdades de Farmácia nos Centros Académicos Clínicos e no Serviço Nacional de Saúde…

Merece ainda alusão a Plataforma Ensino-Profissão, criada pela Ordem dos Farmacêuticos, com vista a analisar o problema. Num relatório de Março de 2018, com a participação das instituições de ensino e das instâncias da profissão, traçava-se um plano geral de acção. Passados três anos, quais os resultados? Poucos ou nenhuns – opta-se por uma política de aparências, remediando as deficiências estruturais do ensino e responsabilizando a Directiva Europeia 2005/36/CE e as exigências da A3ES, ao invés de enfrentar a realidade.

5 No entanto, nem tudo é mau. Os farmacêuticos apresentam uma demografia muito favorável quando comparada com o envelhecimento da população (e de outras profissões diferenciadas, como os médicos). Impõe-se, pois, uma análise do potencial existente para uma verdadeira reengenharia de futuro do ofício farmacêutico.

Impõe-se agir rapidamente para garantir que são formados profissionais autónomos, diferenciados técnica e cientificamente, que garantam a segurança e a efectividade dos medicamentos, dispositivos médicos e terapias avançadas, atentos à crescente complexidade na gestão do circuito das tecnologias da saúde. Importa ainda desenvolver uma nova concepção de intervenção do farmacêutico, como agente promotor de saúde e produtor de conhecimento, independentemente do local onde exerça a sua actividade, em articulação com outras estruturas prestadoras de cuidados e centrado nos cidadãos, obedecendo a elevados padrões ético-deontológicos.

Daqui a dez anos, os cuidados de saúde serão prestados de forma mais personalizada, por equipas interdisciplinares, muitas vezes à distância e numa perspectiva de bem-estar global da pessoa, em que a produção do bem saúde (diferenciado e não-transaccionável) é o centro da cadeia de valor. Terão as faculdades de Farmácia a capacidade de adaptação para formarem farmacêuticos úteis à sociedade e tornar-se centros de difusão de conhecimento em saúde?