Nos últimos dias, a nação comoveu-se. Não com o cinquentenário, para que toda a gente deu a esmola previsível, mas com a passagem de um jovem comentador televisivo a jovem cabeça de lista às europeias. Mas foi só até aí que chegou a surpresa da nação. Porque sobre a outra transição da semana, que foi a anunciada passagem do antigo primeiro-ministro a comentador televisivo, já nada teve para dizer. E no entanto, esta é a chave da primeira. É porque António Costa pode passar, sem o tal “período de nojo”, de chefe de governo a comentador de canal de notícias, que Sebastião Bugalho, também sem luto, pode voar de comentador de canal de notícias a, por enquanto, deputado europeu. Políticos e comentadores são, há muito tempo, espécies intermutáveis.
Se quiserem saber, não começou agora. Sabem de onde vinha António Rodrigues Sampaio, chefe do governo em Março de 1881? Do equivalente oitocentista do canal de notícias, o jornal diário: era o célebre redactor de A Revolução de Setembro. Não foi caso único. Mariano de Carvalho, Emídio Navarro, Manuel Brito Camacho e João Chagas foram jornalistas famosos antes de serem ministros. Em regime representativo, a “opinião pública” era rainha, e escrever na imprensa tornou-se um dos meios de obter os seus favores. Como descobriu um dos personagens de Eça, era agora com a pena, e não com a espada, que se conquistavam castelos. Até Salazar, nos anos 1920, fez nome escrevendo no Novidades. Políticos foram comentadores, e comentadores foram políticos.
Estou a dizer que não há problema? Não estou. Pode haver um problema. Mas não onde a nação, com alguma inocência, julgou que estava. O problema não é o comentador passar a político, ou o político passar a comentador. Nem sequer é a notoriedade prevalecer sobre a “substância”, como agora se diz. O problema é outro, como se perceberá pelo actual Presidente da República. Foi o segundo motivo de conversa da semana. Perante jornalistas estrangeiros, o Presidente divagou sobre tudo, desde a ruralidade do primeiro-ministro às reparações coloniais. O Presidente, que foi comentador durante anos, continua a falar como se não ocupasse um cargo e não tivesse responsabilidades. Segundo um jornalista brasileiro, gabou-se de já ter “quase 60% de aprovação”. Como um comentador orgulhoso da audiência do seu programa.
O problema é o comentador continuar comentador, e o político continuar político. O político que continua a fazer política quando é comentador degrada a confiança na comunicação social, onde as direcções editoriais deixam que sirva ao público, como “análise”, o que é intriga partidária. O comentador que continua a comentar quando é titular de um cargo público degrada as instituições, porque não há autoridade sem alguma gravidade e as palavras de um presidente da república não devem ser vãs.
Mas é preciso perceber porque isto acontece. Os políticos passam a fazer política através do comentário quando perdem os seus cargos no Estado ou nos partidos, isto é, quando lhes falta poder. E os comentadores continuam a ser comentadores, mesmo em cargos públicos, pela mesma razão: por falta de poder. O presidente da república, aliás, não é o único que precisa de falar para não ser esquecido ou para que não falem, a propósito dele, de outras coisas. Neste momento, por opção do PSD, a governação em Portugal caiu no parlamento, e ali jaz, paralisada pelas incompatibilidades partidárias. Não por acaso, também o líder parlamentar do PSD vai ser comentador televisivo. Só falta o primeiro-ministro anichar-se igualmente na grelha de algum canal. É o que resta agora aos nossos governantes: comentar.