Anda inconsolável, o Dr. António Costa, que já julgava ouvir as bocas do mundo a entoarem-lhe hosanas e cânticos pelo extraordinário “milagre português”, supostamente conseguido na contenção da C0vid-19, quando, afinal, o ingrato vírus continua a multiplicar-se em contágios lisboetas. Compreensivelmente desesperado, o Primeiro-Ministro protestou com os seus que, se a coisa correr mal (a expressão está mal empregue, porque já está a correr), a culpa não será sua, mas de quem não lhe dá a informação de que precisa “para tomar decisões”, e dos portugueses, que não fazem o que ele manda. António Costa declarou, assim, a sua impotência: ele e o Governo a que preside não são capazes de evitar a multiplicação do contágio. E, sem que se tenha apercebido disso, reconheceu o óbvio: o socialismo não funciona.

Efetivamente, a doutrina socialista sustenta-se na convicção de que as sociedades humanas são naturalmente conflituais e que carecem, por isso, do poder interventivo do Estado para que os homens que as compõem possam encaminhar as suas vidas rumo a níveis de segurança e de bem-estar, que, de outro modo, jamais alcançariam. O socialismo olha, assim, para a sociedade como uma pluralidade de indivíduos incapazes de comporem, entre si, as suas relações de modo cooperativo e reciprocamente vantajoso. Segundo esta forma de ver as coisas, os homens são naturalmente egoístas e seguem, nas suas relações sociais, apenas o seu interesse próprio em detrimento do interesse comum, que, para o socialismo, é o interesse coletivo interpretado pelo Estado. Milagrosamente, os mesmos homens que, na vida civil, desprovidos de poder público, se digladiam por razões egoístas, transformam-se, uma vez titulares de cargos públicos, em seres extraordinariamente equilibrados e sensatos, exclusivamente motivados pelo bem comum, capazes de determinar as melhores escolhas para a vida de milhões de seres humanos, em nome de quem tomam decisões. Só que as coisas não funcionam assim e o Dr. António Costa, ainda que o ignorasse, acaba de ter uma prova concludente disso mesmo.

Para entendermos as razões que conduzem ao fracasso dessa “presunção fatal”, como Friedrich Hayek designava o socialismo, há que ter em conta o pressuposto de que o Estado não é dirigido por seres angelicais, governantes alados e com auréolas luminosas sobre a fonte, mas por mulheres e homens vulgares, verdadeiramente iguais a todos os outros, exceto no poder desmesurado de que, nessas alturas, dispõem para intervir na vida dos “comuns”. É certo que a visão, profundamente anti-democrática e anti-igualitária, de que aqueles que nos governam estão acima dos demais e que, por isso, constituem uma elite, é muito antiga e está, entre nós, firmemente implantada desde as influências francófonas, provindas do absolutismo napoleónico, que fomos incorporando nos nossos quadros mentais, ao longo de todo o século XIX. Mas o socialismo agravou-as, porque discrimina os seres humanos: uns, os homens comuns desprovidos de poder público, são uns tolos incapazes de se entenderem e de conduzirem as suas vidas sem o poder paternal do Estado; outros, os «semi-deuses» que pertencem às elites do poder, são esses pais que tomam conta de nós.

Foi esta falácia que a Escola da “Public Choice” desmontou, há já alguns anos. Essa corrente liberal estava ancorada na George Mason University, na cidade de Fairfax (Virgínia), sendo, por esse facto, comumente referida como a “Escola de Virgínia”, e afirmou-se com os trabalhos académicos de James Buchanan (Nobel da Economia em 1986), de Gordon Tullock e de outros importantes economistas. O seu objeto de análise foram os processos de “political decision-making”, o modo como realmente se formam as decisões políticas, olhando-as de modo objetivo e sem fugir à realidade dos factos. Quando assim procedemos, constatamos que o universo político é constituído por uma infinidade de indivíduos e grupos (partidos, grupos de pressão, comunicação social, igrejas, sindicatos, etc.), que agem racionalmente e têm interesses próprios, que prosseguem nas funções públicas que desempenham, que só acidentalmente poderão assemelhar-se ao, por eles mesmos declarado, “interesse público”. Este último é, de resto, um conceito indefinível e indeterminável pela própria natureza das coisas, na medida em que cada protagonista o enuncia e interpreta pelo seu próprio cânone, quase sempre divergindo com o dos seus adversários, executando políticas radicalmente diferentes sobre as mesmas matérias. A escolha pública segue, por isso, uma racionalidade na tomada de decisão que tem mais a ver com a satisfação dos interesses de quem decide do que com os daqueles sobre quem recai. Os políticos e os seus grupos perseguem objetivos próprios, que são prioritários sobre quaisquer outros: essencialmente, a conquista e a manutenção do poder do Estado.

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Quer, então, isto dizer que a decisão pública está completamente alheada dos interesses dos indivíduos comuns? Não necessariamente, na medida em que estes são eleitores e são imprescindíveis, em regimes democráticos, para alcançar e manter o poder. Uma vez que um elevado grau de insatisfação pode ter consequências indesejadas para os governantes, com repercussões eleitorais severas, os políticos têm isso em muita atenção e desdobram-se em todo o tipo de populismos, mesmo naqueles que procuram disfarçar com alguma sobriedade, para manterem a estima popular. É, por conseguinte, de uma forma essencialmente utilitária, tendo em consideração os fins políticos pessoais e de grupo, como eleitores e não como indivíduos, que as pessoas são tidas em conta no processo político. Daí as promessas aos eleitores raramente serem cumpridas quando se alcança o poder. Ou que as decisões impopulares, por necessárias que sejam, nunca serem anunciadas antes das eleições, sendo executadas somente quando os governantes já não lhes podem escapar. E é por essa razão que, em Portugal, as célebres reformas nunca, ou muito raramente, acontecem: porque, no curto prazo, por mais vantagens que mais tarde possam trazer, geram insatisfação imediata e a insatisfação faz perder votos e poder.

É esta forma de ver a política “without romance”, como James Buchanan definia o seu método de análise, que nos pode levar a compreendê-la melhor, uma vez desprovida do manto diáfano das boas intenções com que todos os políticos gostam de se apresentar ao povo. A verdade é que, no processo político, há, a montante e a jusante, que satisfazer os mais próximos, aqueles que constituem o grupo, ou os grupos, de sustentação no poder. Por essa razão, multiplicam-se, em lugares de responsabilidade do Estado, os apparatchiks e comissários políticos, os boys e as girls dos partidos do Governo desprovidos de qualquer preparação técnica e humana para lidarem com a complexidade dos problemas que têm de gerir. Essa gente forma verdadeiras escolas de carreirismo político, que principiam, cada vez mais cedo, nas respetivas “jotas”, e que, por sua vez, vedam o acesso às estruturas de poder de terceiros não comprometidos nestas relações de autêntica vassalagem.

As consequências desta impreparação na gestão do Estado vemo-las e sentimo-las todos os dias. Olhando apenas para os últimos anos, bastará ter presente o amadorismo com que se lidou com os incêndios de 2018, que estavam a cargo de uma estrutura de responsáveis que tinha sido recentemente “remoçada” com quadros oriundos do PS, com fraca preparação técnica. Ou, nestes tempos mais próximos, relativamente ao iminente colapso do “milagre português” nas políticas públicas contra a pandemia, as queixas de Fernando Medina sobre os “maus chefes”, aqueles a quem a gestão da crise sanitária está entregue, e até do próprio António Costa, que ainda há dias protestava por não lhe fazerem chegar a informação de que dizia precisar para tomar decisões. Deixando de lado a crise sanitária, também o nefasto resultado que já se antevê da eventual nacionalização da TAP, solução que o primeiro-ministro diz ser a que menos desejava, e que será em boa parte provocada por uma “bravata ideológica” do ministro da tutela contra os acionistas privados da companhia, utilizando as palavras com que o insuspeito Pedro Adão e Silva qualificou a atuação irresponsável de Pedro Nuno Santos.

António Costa está a ser, portanto, vítima de si mesmo e da sua forma aparelhista de fazer política no Governo. Ele poderá não entender por que motivo falham os seus planos e as suas ordens. A sua fé no socialismo e no talento natural dos seus é grande. Mas bastará termos em conta a nomeação que fez do grupo dos cinco responsáveis pela coordenação do estado de emergência e de calamidade pública, para compreendermos boa parte dessas razões: Eduardo Pinheiro, Secretário de Estado da Mobilidade; João Paulo Rebelo, Secretário de Estado da Juventude e Desporto; Duarte Cordeiro, Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares; Jorge Seguro Sanches, Secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional; e José Apolinário, Secretário de Estado das Pescas. Indo um pouco mais atrás, à formação do Governo, a nomeação de Jamila Madeira como Secretária de Estado da Saúde, uma das responsáveis pela organização do combate à pandemia. Nenhuma destas pessoas apresenta, no seu curriculum público, qualquer formação científica ou técnica para lidar com problemas de saúde pública. E, quanto a Pedro Nuno Santos, pouco ou nada saberá sobre companhias de aviação. Em contrapartida, apesar de quase todos serem ainda relativamente jovens, não há um só que não tenha uma ancestral ligação ao Partido Socialista e uma extensa folha de serviços prestados nas habituais prebendas políticas existentes nas autarquias locais e nos incontáveis lugares do aparelho de Estado. Seriam estas pessoas as mais indicadas para esta circunstância e estas responsabilidades? Obviamente que não. Mas o processo político assim o determina e António Costa, também ele um homem de aparelho, não lhe soube ou não lhe quis escapar. Nem ele à natureza da política e à sua própria natureza, nem nós às inevitáveis consequências nefastas das suas decisões.