Os britânicos têm um ditado que reza assim: paus e pedras podem partir os meus ossos, mas as palavras nunca me incomodarão. Nos anos sessenta do século passado, os americanos reformularam o ditado, passando a afirmar: paus e pedras podem partir os meus ossos, mas as palavras causam danos permanentes. Por várias razões, concordo com os americanos.

O uso que damos às palavras não é neutro e, para além disso, está demonstrado que os discursos de ódio são a antecâmara dos actos de violência motivados pelos ódios.

Ora acontece que o princípio da presunção de inocência, tal como todas as demais conquistas civilizacionais, como a Democracia, o Estado de Direito, o direito a um julgamento leal e não preconceituoso (fair and unbiased trial) e o direito a um julgamento de acordo com um ritual legalmente previsto e antecipadamente fixado e conhecido (due process of law), não são naturais aos seres humanos, mas sim o resultado de séculos de batalhas, que implicaram não apenas sangue, suor e lágrimas, mas também a perda da vidas de incontáveis seres humanos. O nosso estado natural é o do pensamento tribal (ou até de clã) e, em alguns casos, infelizmente cada vez mais frequentes e potenciados pelas chamadas “redes sociais”, é o espírito de horda.

Antes de prosseguir, só uma explicação acerca da utilização da expressão fair and unbiased trial e da sua tradução julgamento leal e não preconceituoso, em vez de fair trial (versão em língua inglesa do conceito que consta, nomeadamente, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos) e julgamento leal – já agora, a meu ver, a correcta tradução de fair não é justo, ideal cuja determinação varia consoante a visão de quem o proclama, mas sim o mais facilmente definível leal.

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Uma vez mais, para os ingleses (que inventaram o conceito — lembram-se da Magna Carta?), fair é suficiente. Já alguns americanos (e isto também é uma “coisa” do século passado), acharam que seria melhor acrescentar-lhe o unbiased. Novamente, vá lá saber-se porquê, alinho com os americanos.

Mas voltando à presunção de inocência, o que quero afirmar com este meu escrito é que esse princípio, que por ser anti-natural é muitíssimo frágil, já está sob severo ataque (e não apenas com as grosseiras e sistemáticas violações do segredo de justiça), ou seja, já está suficientemente em perigo, pelo que são bem dispensáveis novos ataques, ainda para mais quando os mesmos são desferidos por quem se afirma defensor do princípio.

Cada palavra tem um peso e um significado muito próprios e o uso de umas em vez de outras acarreta consequências. E isso é algo que não pode ser ignorado.

Vem tudo isto a propósito não do “caso Rendeiro” porque não posso, por dever estatutário, e também porque não quero, pronunciar-me acerca da tramitação de casos concretos, mas sim da discussão pública provocada pela situação desse arguido condenado com trânsito em julgado.

E não o faço como Juiz — que sou e não o escondo –, muito menos como representante dos Juízes — que não sou e também não o escondo –, mas sim de uma pessoa que já esteve por várias vezes “na mó de baixo” (felizmente não na vertente penal — até porque, de facto, não ando por aí a praticar crimes) e que, portanto, percebe muito bem como é fundamental a preservação dos princípios civilizacionais ligados ao conceito do direito a um julgamento leal e não preconceituoso.

Aliás, o que eu acho curioso é a existência desta ideia generalizada de que a “mó de baixo” é só para os outros. Pensem bem nisso.

Mas, voltando ao assunto, na verdade, o que está em causa é, não o princípio da presunção de inocência, mas sim um outro completamente distinto, qual seja, o efeito de subida dos recursos, que, na jurisdição penal, sobem com efeito devolutivo. Ou seja, ao contrário do que acontece na jurisdição cível (que é aquela em que exerço funções), em que, salvo raras e bem precisas excepções, os recursos sobem com efeito devolutivo e as decisões podem ser executadas de imediato (embora em certos casos esse efeito possa ser atribuído mediante a prestação de uma caução), na jurisdição penal, as decisões não podem ser executadas de imediato.

E colocar a questão nestes termos — que, em meu entender, é a forma correcta de discutir o problema (porque, indiscutivelmente o problema existe) — inviabiliza a concretização de novos ataques ao princípio da presunção de inocência, o qual, como todos os demais valores civilizacionais a que antes fiz referência — que, repito, são, como ele, anti-naturais — não tem vida fácil nem uma consagração irreversível. Nada nesta vida é irreversível, a não ser a morte (e mesmo essa…).

Logo, eu também sou favorável a que as decisões judiciais (para a formação das quais é indispensável que esse princípio tenha sido efectivamente concretizado e posto realmente em prática) possam ser imediatamente executadas independentemente da apresentação de recurso, sendo que, naturalmente, as pessoas presas nessa situação (isto é, com recursos ainda pendentes, ou com possibilidade de ainda virem a ser interpostos), tal como deveria acontecer sempre com as detidas em prisão preventiva, não poderiam ser colocados nas mesmas cadeias que as pessoas que não têm recursos pendentes ou em que os prazos de apresentação de recursos já foram ultrapassados.

Aliás e em boa verdade, mesmo quanto a estas últimas, também deveriam existir cadeias diferenciadas — o que, todavia, é uma outra discussão que também “ninguém” quer ter; pois não foi decidido, sem escândalo público, que os problemas da reinserção social podem muito bem ser geridos por quem tem a seu cargo a administração dos “armazéns de presos” que as cadeias portuguesas são?

Mas, então, porque não são as sentenças judiciais proferidas na jurisdição penal executadas de imediato?

Não, não é por causa do princípio da presunção de inocência, mas sim porque existe uma desconfiança, apenas sussurrada e não afirmada claramente, contra os Juízes.

Assinalo que foi publicado em Espanha um livro, que ainda não tive oportunidade de o comprar, no qual, aparentemente — como não o li não o posso afiançar –, é colocada em discussão a ideia de que, na jurisdição penal espanhola, é posta em prática uma presunção de culpabilidade dos acusados e não a devida presunção de inocência.

E é essa a desconfiança sussurada a que aludi.

Essa não é a minha opinião, sendo que, todavia, venho sustentando, há já mais de 30 anos, que existem falhas na formação dos Juízes, e que, uma vez que a especialização das jurisdições e dos Juízes, não é uma bênção (isto é, uma coisa em si ontologicamente boa), antes constituindo uma necessidade social incontornável, há que ter cuidados especiais nessa formação, para que as “rotinas” do quotidiano não conduzam a uma perda do que chamamos o “panorama geral” e, menos ainda, da importância da preservação desses princípios civilizacionais essenciais.

E essas sim, são as discussões que devem ser tidas. Quem as quer ter?