Nos tempos de Sócrates passei algum do meu tempo a clamar – não propriamente no deserto, mas nos blogues – que a pior herança do socratismo não seria o descalabro financeiro. Mesmo depois da bancarrota de 2011, mantenho que pior que a crise com que o desvario socialista nos presenteou foi a degradação moral da nossa democracia (que já era moralmente periclitante) trazida pelo PS de Sócrates.

O ataque cerrado, agressivo e concertado às pessoas ruins e aleivosas que tinham a ousadia de quebrar a imagem idílica que o PS queria transmitir do país. A falta de educação ostensiva do primeiro-ministro na Assembleia da República para os representantes dos eleitores dos outros partidos. O à vontade público com que organismos públicos cortavam publicidade em órgãos de comunicação social desafetos ou boicotavam a estação televisiva mais vista pela maioria dos cidadãos. A forma como a CGD emprestava dinheiro a empresários amigos para adquirem ações de empresas para, de seguida, receberem de volta o favor de estes votarem para o BCP uma administração com os escolhidos do governo. Os comentários execráveis de Augusto Santos Silva, em flagrante competição com o inquisitorial Louçã, que se tornaram na normalidade de ser ministro sob Sócrates. Isto, claro, sem atender aos caminhos socráticos, ainda mais sinuosos, que se conheceram no fim ou depois da era Sócrates.

Posto isto, quando a improvável Canavilhas aventou o despedimento da jornalista do Público que teve a ousadia de refutar o agora aliado do governo, o alegado professor Mário Nogueira, só me apeteceu sugerir: ponha a mão no ar quem se espanta com tamanha intimidação de jornalistas. E – ainda mais – quem estranha que a intimidação fosse assim, às escâncaras e sem qualquer vergonha. Esta é a característica mais perturbante do comportamento de Canavilhas: a evidência de como no PS consideram que é seu direito natural mandar calar quem bem entendem. Tanto, que nem sentem necessidade de o fazer num canto escuro e escondido.

Mas igualmente intragável e inaceitável em qualquer democracia que se dê ao respeito foi a justificação que Canavilhas deu ao Observador: quem faz capas de jornais deve ser tão escrutinado como um político. (Sim, leram bem. Evitem os soluços de tanto rir.) Temos, assim, uma deputada que opina que quem decide sobre a quantidade de dinheiro a retirar em cada ano aos cidadãos (também conhecida por impostos) tem tanta influência na vida do português desprevenido como um jornalista. Ou quem decide que áreas favorecer com os impostos cobrados, através da votação do orçamento, deve merecer a mesma vigilância que quem escreve sobre uma manifestação. Ou que os responsáveis políticos que gastam o que foi cobrado coercivamente pelo estado (outra vez: os impostos) são tão inócuos como quem decide o alinhamento das notícias na capa de um jornal. Caríssimos: quem perora desta forma é claramente incapaz de exercer como deputada, tal a falta de noção do impacto que a sua atividade tem na vida dos governados.

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Mas isto é só outro método que os tempos socráticos inauguraram. Ao mesmo tempo que se baixa a fasquia moral dos deuses do PS, esbraceja-se abundantemente apontando a terceiros supostas iniquidades. Assim, Canavilhas não só não tem de ser maçada com o facto de ter sugerido publicamente o despedimento de uma jornalista (os políticos são humanos, têm sentido de humor, blablabla), como quem deve ser de facto escrutinada é a jornalista do Público. Nem sei como Canavilhas se tornou pianista em vez de escritora de distopias, tal o talento para a perversidade política.

E – fica sempre bem exibir padrões – foi exatamente isto, a propósito da possível comissão de inquérito à CGD, que fez Sócrates ressuscitado (pelos bons ofícios de Costa, que já começou a tratar da sua reabilitação – veja-se o convite para a inauguração do túnel do Marão).

Sócrates – do alto da credibilidade de quem afiançou que vivia em Paris sustentado apenas pela mãe e pelo empréstimo da CGD – afirma enfaticamente que nunca deu instruções à CGD para financiar quem fosse. Ao mesmo tempo, este vulto da moralidade acusa a direita de lhe fazer um ataque de caráter (gargalhadas intermináveis) ao propor uma comissão de inquérito à CGD.

O PS de Sócrates está bem e recomenda-se. De resto, por alguma razão Costa manteve e promoveu tantos dos apaixonados por Sócrates. Tirando as fotocópias, este governo é igual a papel químico aos governos de Sócrates. E, para as fotocópias, infelizmente desconfio que será só esperar. Porque não há adubo melhor para a corrupção do que um governo a expandir o estado e, a somar, ainda com esta visível convicção de que por direito natural tudo lhe é permitido.

A única forma de lidar com esta estirpe tóxica de políticos é limitar-lhes a esfera de ação, encurtar-lhes o estado e as empresas públicas onde podem estender a sua influência. Um banco público (calha lembrar-me deste exemplo), num regime prisioneiro do PS, não serve para financiar a economia. Se os negócios forem bons, os bancos privados vão financiar; e se os negócios são arriscados, a CGD devia abster-se: era o que faltava arriscar os impostos dos contribuintes. Como está, a CGD serve apenas para recompensar próximos, nomeando-os administradores (com este governo são tantos que qualquer dia não cabem num auditório de média dimensão), e para financiar a economia dos empresários amigos (do PS, geralmente).

Para ser justa, termino reconhecendo que o PSD também esteve mal com a CGD: devia ter privatizado a aberração socialista e esqueceu-se.