Sábado passado, de manhã, apanhei um táxi para ir comprar um romance de Camilo a um alfarrabista na Rua Formosa. O taxista era falador. O tempo (é preciso chuva), o futebol (o Porto está bem) e, quase a chegar ao destino, a política. Rui Rio vai ganhar as eleições. É sério. Fala uma linguagem que toda a gente percebe. É pão, pão, queijo, queijo. Nunca ouso discordar de um taxista, é um dos meus poucos princípios firmes. Mais um voto garantido para o homem sério, pensou ele de certeza.
À saída, com o livro de Camilo (com as “palavras difíceis” – em Camilo sempre muitas – sublinhadas pelo anterior proprietário) debaixo do braço, fui a pé até à Praça D. João I apanhar outro táxi. Há muito que não via tanta gente na rua. Em Santa Catarina, tudo fervilhava, tudo mexia, no meio de uma luz branca, doce e bonita. O povo, meu colega, andava às compras. Como levo, desde há mais ou menos vinte anos, uma vida de eremita, sem quase, nos últimos tempos, me dar conta dos confinamentos, fiquei surpreendido. Mas foi tudo menos desagradável. Pelo contrário, gostei. Lembrou-me um mundo antigo, que tinha praticamente esquecido, quando ainda sentia a cidade como minha. É curioso como o contacto com uma pequena multidão pode despertar um sentimento assim. Deve dizer bem da humanidade.
O segundo taxista também era falador. Desta vez, a política veio logo à tona. Era uma pessoa de esquerda, tinha votado no PS nas duas últimas eleições. Mas zangara-se com Costa com o fim da geringonça. Não lhe perdoava, dizia ele, o fim da aliança com a esquerda. Devia pagar por isso. Felizmente, havia Rui Rio. Rui Rio ia fazer o que é preciso fazer. Toda a gente percebe o que ele diz. E está preparado para governar – para me servir dos sublinhados de Os brilhantes do brasileiro, é “de sola e vira”. Mais uma vez, não contrariei o entusiasmo, que durou até à Cozinha da Amélia, onde ia almoçar.
Estas coisas, sobretudo se acompanhadas de outros sinais que se sentem por aí, dão que pensar. Eu sei que é no Porto, onde Rio goza de uma popularidade que não tem no resto do país. Mas quer dizer alguma coisa. Quer dizer pelo menos uma coisa. Que um dos atractivos maiores de Rio para certas pessoas não reside em qualquer corte com o programa de governação do PS, mas numa mera questão de estilo. Nem, de facto, podia ser de outra maneira, até porque, que eu tenha reparado, Rui Rio não anunciou nunca um programa verdadeiramente diferente do programa do PS em matérias substantivas. É mais uma questão da maneira de falar e da aura de seriedade que muitos vêem nele. É, como disse, uma questão de estilo. O que mostra que, para uma fatia indeterminada da sociedade, ele é persuasivo e ecoa um ideal de homem político.
Deste motivo maior, e da ausência de um motivo político bem definido, há algo que se pode deduzir sem grande risco de incorrer em erro. Muita gente está resignada ao seu actual modo de viver, sem imaginação para pensar algo diferente. Nem sempre foi assim. Nuno Gonçalo Poças lembrou excelentemente, aqui no Observador, que noutros tempos houve vontade de acreditar na possibilidade de uma alternativa, como com a Aliança Democrática, em 1979. Hoje essa vontade é extremamente ténue. No essencial, as pessoas parecem estar conformadas com a mediocridade reinante e agarram-se ao que vai flutuando à superfície de um declínio ao qual se parecem ter habituado.
Uma atitude deste tipo exclui à partida a possibilidade da conflitualidade política. Ou, pelo menos, redu-la à dimensão de um antagonismo de personalidades, sem qualquer divergência substantiva em matéria propriamente política. Ora, por mais que nos tentem convencer do contrário os apóstolos do consenso e da harmonia social, isto não pode ser uma coisa boa. O conflito político é a essência da liberdade e uma sociedade que se pretende sem conflito é, por definição, uma sociedade pouco livre. Mais. O conflito está na sociedade, quer se queira quer não. O que acontece é que ele pode, em certos casos, perder os bons modos e deslocar-se do centro da vida política, que devia ser o seu lugar nas democracias liberais, para a periferia, sob a forma dos populismos de esquerda e de direita. Para algum lado ele teria de ir.
Mas estas duas questões – a dimensão conflitual da vida política e a natureza do populismo – são matéria suficientemente complexa para me abster neste artigo de ir mais longe. Tanto mais que me caíram nas mãos dois excelentes livros que lidam com estes assuntos e dos quais tenciono falar para a semana. Uma coisa, no entanto, devo acrescentar: uma sociedade destinada a escolher entre António Costa e Rui Rio é uma sociedade que vai por muito maus caminhos. Não por causa de nenhum deles em particular – não nego nem a habilidade nem a seriedade –, mas por causa de nenhum deles representar nada de substancialmente diferente do outro. Politicamente, entenda-se.