O título que eu gostaria de dar ao artigo de hoje, e do qual, por razões óbvias, desisti, é, como o de certos livros de outros tempos: O que é preciso saber, ou de como viver em Portugal mantendo alguma atenção à realidade política, sem deixar que ela invada a nossa vida mental. Alguns conselhos dados com o auxílio de um método infalível que permite identificar as características permanentes dessa mesma realidade, recorrendo eventualmente à sabedoria de autores célebres, opinantes ilustrados e personagens anónimas, que nos protegem de qualquer incómoda surpresa no futuro e nos asseguram a liberdade de espírito necessária ao desenvolvimento das nossas vocações privadas e a realização dos nossos mais íntimos desejos.

Seria um título muito promissor. Numa linguagem mais adequada aos tempos presentes, o que eu ambicionaria era encontrar um truque mágico (uma espécie de exorcismo) que mantivesse a uma saudável distância protectora tudo o que pessoalmente me lixa na política portuguesa e que, ferindo-me (sou um tipo sensível), diminui a minha capacidade de agir e de pensar no que mais verdadeiramente me importa. Suponho que não sou o único a sofrer deste mal e a sentir a necessidade de uma solução. Aquilo que é comum, aquilo que não releva do idiossincrático, é, de longe, o mais importante. Por isso, esta lista do que importa saber sobre quem influi neste estado.

António Costa – Um carpinteiro hábil faz, por exemplo, boas cadeiras. Um cozinheiro hábil revela-nos novos sabores ou realiza na perfeição sabores antigos de que gostamos. Um orador hábil conduz-nos a experimentar os sentimentos que nos deseja inculcar. Um político hábil consegue levar a sociedade a um estado de maior justiça e prosperidade. Mas um político é também dito hábil se é perito em assegurar a sua própria manutenção no poder, visando, se possível, ainda mais poder. António Costa é, com efeito, um político hábil neste último sentido. E é tão mais hábil quanto dispõe de uma inusitada dose de cinismo. Por uma intuição longamente experimentada, adivinha na perfeição as fraquezas dos outros e explora-as para a sua sobrevivência pessoal. José Miguel Júdice disse um dia no seu programa de televisão que Costa, aconteça o que acontecer, mantém os seus ministros mais calamitosos por um sábio cálculo: enquanto disparam sobre eles, não disparam sobre ele (Cabrita é apenas o último em data de uma longa série). Funcionam como uma espécie de escudo protector. Compro perfeitamente esta tese, que desvela às mil maravilhas o cinismo do Primeiro-Ministro. Se não quisermos viver em danosas ilusões, é isto que em primeiro lugar é preciso saber sobre António Costa.

Bloco de Esquerda – Pouca coisa subsiste hoje da visão marxista da história e da sociedade no Bloco de Esquerda, e o que subsiste encontra-se praticamente reduzido à versão seminarista que propõe Francisco Louçã. As divisões teórico-políticas, tão vocais no passado, desvaneceram-se. Longe vão os tempos em que, a mando de Estaline, Rámon Mercader assassinou Trotsky, no seu domicílio mexicano, com uma picareta na cabeça. A picareta foi enterrada e o cachimbo da paz (com haxixe ou não) fumado. Os herdeiros do assassino (que, quando eu era novo, gritavam ritmicamente: “Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao Tsé-Tung!”) e os herdeiros do assassinado deram-se as mãos, esqueceram-se das fracturas no crânio de Trotsky e dedicam-se agora, à boleia da esquerda universitária americana, à teoricamente infindável e sempre renovada lista das causas fracturantes. Aburguesaram-se em nome do progressismo e depositam uma sanguínea e passavelmente justificada esperança na facilidade com que as pessoas confundem o contacto com as palavras com o comércio com as ideias. As palavras que andam no ar são absorvidas e, sem reflexão, tomadas por ideias desde ontem ou anteontem eternas e irrefutáveis, vindas de um céu platónico instantâneo, pelas quais estamos prontos a jurar, mesmo que na semana anterior nem as palavras conhecêssemos. E a coisa funciona, sobretudo enquanto o Bloco tiver à sua frente uma criatura à sua maneira simpática e que nunca se irrita como Catarina Martins. Quando ela apareceu, dizia-me a óptima Dona Lurdes, que dantes vinha fazer limpezas cá a casa: “Aquela menina tem qualquer coisa.” Nunca me esqueci. Eis o que se deve saber acerca do Bloco – e, no que respeita à relação com as ideias, acerca de nós.

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Marcelo Rebelo de Sousa – Não há mal algum em ser-se ridículo quando se está apaixonado. Faz parte do jogo e é inevitável, excepto no que respeita a seres improvavelmente olímpicos. A paixão é uma espécie de ridículo religioso, é a religiosidade possível no ateísmo, que é uma atitude partilhada por muitos católicos nominais. A coisa é diferente quando se tem uma necessidade devoradora de se ser amado, sem que essa necessidade seja fruto de qualquer paixão. Alguém que não era propriamente conhecido pela sua estupidez sugeriu uma vez que quem mais precisa de amor são aqueles que se ferem às suas próprias mãos. Confesso que, mesmo quando Marcelo diz ou faz coisas que me parecem inúteis ou disparatadas – quer dizer: ridículas -, não consigo nunca verdadeiramente embirrar com ele. Mas, atendendo à sua incessante demanda de amor generalizado, que transparece em praticamente todas as suas palavras e acções, pergunto-me: que é que uma pessoa inteligente e frequentemente divertida como ele se fez, ou se faz, a si mesmo? Não faço a mínima ideia. Nem sequer quero saber. O que seria preciso saber sobre ele não se sabe. Que se saiba, pelo menos, isso.

PCP – Num clássico menor da literatura inglesa, The Vicar of Wakefield, de Oliver Goldsmith, o Dr. Primrose, o vigário em questão, desejando que a sua mulher persevere nos bons princípios, escreve o antecipado epitáfio dela e encaixilha-o, dispondo-o em cima da lareira, para que ela, tendo-o à frente, sempre por eles se guie: “Exaltei a sua prudência, economia e obediência até à morte; e, tendo-o feito belamente copiar, com um elegante caixilho, foi colocado em cima da lareira, onde correspondia a vários muito úteis propósitos. Advertia a minha mulher do seu dever para comigo e da minha fidelidade para com ela; inspirava-a com uma paixão pela fama e constantemente a fazia pensar no seu próprio fim.” Substituam (se calhar) a “prudência, economia e obediência até à morte” pelo “combate contra o imperialismo americano, política patriótica e de esquerda e luta contra a exploração capitalista” e têm o antecipado epitáfio de qualquer militante que se preze do PCP, constantemente lembrando-o da “superioridade moral dos comunistas”, uma lenda com a qual ainda hoje vivem. Foi sempre assim e será sempre assim. E é preciso saber isso acerca do PCP.

Rui Rio – Contam-se pelos dedos de uma mão (enfim, talvez das duas) as vezes em que vi jogos de futebol ao vivo. Habituado às repetições dos golos na televisão, nunca me habituei ao furtivo instante dos golos ao vivo. Foi golo? Não percebi. Numa dessas incursões, no velho Estádio das Antas, em fins dos anos oitenta, um adepto portista sentado à minha frente, indignado com uma substituição que o treinador do Porto (não me lembro quem era) fizera, virou-se para o amigo ao lado e declarou imorredoiramente: “O gajo não habilita, só atrofia!”. Desde há vários anos, sempre que penso em Rui Rio vem-me à cabeça este profundo pensamento. Lamento, mas, presentemente, é quase a única coisa que é preciso saber dele: “Não habilita, só atrofia”.

Salazar e Marcello – Por causa, entre outras coisas, de uma comunicação de Nuno Palma na reunião do MEL, onde este referiu factos que são do conhecimento público e que em si são insusceptíveis de criar qualquer polémica, surgiu mais uma das costumeiras tentativas de alucinar fantasmaticamente a presença viva de Salazar e Marcello Caetano na nossa sociedade pelos habituais representantes do “anti-fascismo eterno”.  Além de cumprir a função de desviar a atenção dos verdadeiros problemas do presente, tal indisfarçável histrionismo funcional (exceptuo os casos de notória estupidez) revela, como muito bem escreveu António Barreto no Público, uma estranha insegurança: “Gente sem força suficiente para acreditar na democracia, no regime das liberdades e da tolerância, fica hirta e arrepiada logo que uma afirmação sobre o Estado Novo ou a ditadura salazarista não for de mera condenação e simples insulto”. Quase que apetece lembrar que não foi apenas na economia que os últimos tempos do anterior regime conheceram progressos. No próprio plano dos costumes, e apesar da PIDE, da guerra colonial e do resto, a evolução também foi palpável durante a equívoca “Primavera marcelista”. “É para a sua esposa ou deseja algo melhor?”, perguntou o vendedor de sapatos de senhora ao cavalheiro que os foi comprar. O vendedor via na alusão cúmplice à possível amante do cliente um indiscutível sinal da sua própria modernidade. É ridículo – é, sobretudo, muito cómico, que é o ridículo com inocência suplementar -, entre outras coisas? Claro que é, mas estávamos já longe da austera repugnância de Salazar e do persistente olhar da desprezível, vazia e estúpida sisudez autoritária de Américo Thomaz. Nem os ministros acreditavam já naquilo. O que é preciso saber, como condição prévia a qualquer investigação histórica digna desse nome, ou mesmo a qualquer discurso jornalístico, sobre António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano? Simplesmente, que estão mortos. E que, fora do espiritismo esquerdista, não retornam.

Em que é que estas breves notas nos podem ajudar? A haver nelas alguma verdade, permitem-nos fixar aquilo com que podemos contar. E, dessa maneira, a estabelecer alguma distância para com aquilo que nos rodeia. Distância, é claro, não significa segurança e ainda menos invulnerabilidade. Significa apenas tempo para pensar e deliberar. Mas é de crer que ajuda a diminuir a detestável passividade à qual tendemos e que nos impede de agir com mais liberdade, subordinando-nos a esperanças vãs. Pelo menos, espero que me ajude a mim.