Desde o momento em que numa fria manhã de nevoeiro do ano já distante de 2015 se abateu sobre a direita portuguesa um Alcácer-Quibir de gigantescas proporções, que ela tem andado incessantemente em busca de um Encoberto que a salve e lhe permita «viver a verdade que morreu D. Sebastião».

Não foram muitos os candidatos que se prefiguraram para essa ingrata tarefa, todos eles com vantagens recíprocas e inconvenientes próprios. Alguns, como os chefes do PSD e da IL, recusaram mesmo essa caracterização. Outros, por defeito ou por excesso, ficam aquém ou fora das suas necessidades e expetativas. Sobre todos eles, um nome por muitos tido por consensual: Pedro Passos Coelho.

Durante esses anos de chumbo e penumbra, de todos os lados se ia ouvindo dizer que Passos haveria de regressar e que traria consigo a reunificação de um espaço fragmentado em dobro daquilo a que por décadas se habituara a ser. E que vingaria, a partir dessa nova aliança, a humilhação de 2015, conquistando o Santo Graal da política portuguesa, os 115 mais um deputados da Assembleia da República, que domariam o mostrengo socialista.

Eu e muitos acreditámos nisso, não obstante os silêncios do Desejado, aqui e ali parcimoniosamente interrompidos por curtas declarações e breves e circunspectas aparições públicas, às quais o próprio nunca atribuiu outro significado político que não fosse o seu natural interesse pelo estado do país. A generalidade das pessoas comuns pensava, porém, que o que movia Pedro Passos Coelho era muito mais do que isso,e que ele queria sinalizar, com essas lacónias manifestações, a sua existência política e, naturalmente, a sua disponibilidade para, a prazo, regressar à única função que se lhe parecia adequar: a chefia da direita.

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Porém, qualquer pessoa avisada, isto é, com senso comum, sabia que, apesar do muito que é devido a Pedro Passos Coelho, essa não seria tarefa fácil. Desde logo, porque a direita de hoje não é a de 2015, muito menos a de 2010. Onde existiam dois passaram a estar quatro partidos com representação parlamentar e um deles em previsível ritmo de crescimento, não se sabendo até onde poderá chegar. Depois, porque o PSD, o seu próprio partido, se reposicionou à esquerda, de tal modo que a maioria dos seus dirigentes, onde se inclui o próprio líder em funções, rejeita qualquer ligação ideológica à direita. O partido que Passos outrora governou é agora dirigido por uma elite que não se revê nele e que não o aceitaria, de novo, na liderança. Em seguida, porque, se fazer um bloco de governo a dois nunca foi fácil, a quatro será certamente muito mais complicado, talvez até impossível com estes partidos: a IL garantiu que nunca contribuirá para levar o Chega para o governo, enquanto que o Chega anunciou que não haverá governo de direita em Portugal sem a sua participação. Por outro lado, ainda que Pedro Passos Coelho conseguisse superar todas as dificuldades e fosse capaz de unir a direita, António Costa, o PCP e o Bloco continuam, e, contra ele certamente continuariam com redobrado ânimo, a entender-se no essencial, isto é, em manter uma maioria parlamentar de geometria variável que permite a sobrevivência do governo da frente de esquerda. Por último, tenha-se presente que os pensionistas e os funcionários públicos, os tais que dão alternadamente as maiorias ao PS e ao PSD, ainda não o esqueceram, e ele sabe disso. Enfim, a ideia, verdadeiramente sebastianista, de que o retorno do antigo Primeiro-Ministro seria, não só a melhor, mas a única possibilidade de tirar a maioria parlamentar às esquerdas e entregá-la à direita, talvez tenha pecado por excessiva ingenuidade. A água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte, diz o povo, e, dizia Marx, quando ocasionalmente ocorre esse milagre, a reprise vem em forma de tragédia, primeiro, e de comédia, mais tarde.

É, pois, fundamental para a direita compreender o significado político e as consequências da ida de Pedro Passos Coelho à Convenção do MEL, na qual permaneceu do princípio até ao fim, dois longos dias de conferências, palestras e debates, em que participou apenas e só como espetador. E, sobretudo, onde, aos olhos de todos, recebeu e escutou Rui Rio, de quem se despediu, no fim de um longo discurso do seu sucessor, com um abraço e públicas felicitações. Alguns dirão que lá esteve para marcar presença e que assim se transformou na figura central do evento, logo, da direita. Outros, um pouco mais ingénuos, que foi mesmo para ouvir o que aquele escol de personalidades tinha para dizer ao país. Subsistem, ainda, os que garantem que Passos se prepara para regressar ao partido, pensando em São Bento depois das autárquicas, como se lhe fosse possível desafiar, nessa altura, um homem que abraçou e felicitou politicamente poucos meses antes. Por fim, há também aqueles que, em detrimento de São Bento, o veem rumo a Belém, depois de Marcelo partir.

É verdade que Belém dispôs sempre de uma forte posição simbólica no imaginário quinto imperista, de tal modo que Carlos de Queirós, o poeta modernista da Presença, não o treinador da Seleção de Portuguesa de Futebol, chegou a escrever que «só fazemos bem Torres de Belém». Mas será essa a vocação de Passos Coelho? Um cargo pouco mais do que cerimonial, no qual se consome o primeiro mandato a tentar agradar a quem não nos elegeu, para garantir o segundo? E quem promoveria as reformas que eram esperadas de um novo governo seu? Dito de outro modo: para que serviria pôr Pedro Passos Coelho na Presidência da República?

Ora, se o Quinto Império é do domínio do simbólico, há que ter em conta que esse mito não usa sempre as mesmas chaves de descodificação sobre o devir histórico e político. Se, por exemplo, para D. João de Castro, a Quinta Monarquia Portuguesa tomaria forma no corpo místico de D. Sebastião, António Vieira via entronizada, num muito mais vulgar e nada etéreo João IV, a cabeça desse império recuperado pela Restauração. Sebastianistas e brigantinos sempre se desentenderam sobre a titularidade do ceptro imperial do Reino Universal de Cristo, e foi pena que assim tenha sido. Mas é o que é, ou talvez, foi o que foi.

Com a recusa persistente do Desejado, a par de um quase messianismo pessoano que antevia a sua hora, sobeja a realidade política de lideranças medianas e muito frágeis, abalroadas por uma ascensão destemperada das margens, que poderão vir a ocupar mais do centro do que por enquanto se antevê e, com isso, provocar uma hecatombe muito mais profunda do que a de 2015.

É a hora? Só se desilude quem tem ilusões.