1 Vamos começar pelo óbvio: as críticas às buscas à sede nacional do PSD e às buscas domiciliárias a um ex-líder do maior partido da oposição face à suspeita de alegados crimes de peculato e abuso de poder são equilibradas e aceitáveis. Mais ainda quando, a acreditar no ex-secretário-geral adjunto do PSD (Hugo Carneiro), o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa já tinha começado a ouvir diferentes protagonistas do caso.

Com a informação disponível neste momento, as críticas de Rui Rio, de Luís Montenegro e de muitos outros comentadores de que terá ocorrido o uso desproporcionado de meios por parte do DIAP de Lisboa parecem fazer sentido.

O tipo de crime aqui em causa e a documentação que se procurava não aconselhava buscas domiciliárias ou buscas à sede do PSD.

2 Também me parecem claramente fundamentadas as críticas a Lucília Gago, após esta ter afirmado que a procuradora-geral não “despacha processos” ou “define estratégias investigatórias nem os seus tempos ou os seus modos”. São os titulares dos inquéritos que são os “responsáveis pela investigação que, obviamente, seguirão uma linha e pô-la-ão em prática.”

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E são fundamentadas porque a procuradora-geral Lucília Gago optou deliberadamente por uma postura passiva e opaca desde que tomou posse em outubro 2018. Apesar de a lei lhe oferecer poderes muito vastos (alguns deles, até discricionários) na gestão da hierarquia do Ministério Público, Gago não os quer exercer — nunca quis, melhor dizendo.

Dou só um exemplo: tendo em conta os alvos das buscas (a sede nacional do PSD e o ex-líder da oposição), Lucília Gago teve de ser informada antecipadamente do que iria acontecer. Enquanto líder de uma magistratura hierarquizada, Gago não só tem o direito, como a obrigação de ser informada.

Se tiver sido informada — como espero que tenha acontecido —, a procuradora-geral podia, e devia, ter feito um escrutínio interno sobre as buscas que iriam ser realizadas, nomeadamente solicitando informação à diretora do DIAP de Lisboa (através da procuradora-geral distrital) sobre o que estava em causa.

Nada disto foi feito, o que não me surpreende. Há muito que Lucília Gago se demitiu de funções — e ainda ninguém deu por nada. Nomeadamente quem a nomeou (Presidente Marcelo Rebelo de Sousa) e quem a indicou (primeiro-ministro António Costa).

3 Dito isto, vou ser igualmente claro sobre o que penso sobre a “reforma da Justiça” que Rui Rio exigiu no seu melhor estilo populista porque o “Ministério Público atacou a democracia”, porque o que o MP quer é “dizer que os políticos são todos uns gatunos, são todos uns aldrabões”. Daí que a “atuação” que Rio defende é “ao nível da justiça, do Ministério Público, pôr ordem nisto.

As intenções de Rui Rio são muito transparentes — mais até do que na altura em que propôs um famoso pacto para a Justiça (ao qual nenhum partido ligou) para ensinar os juízes a escrever sentenças, entre outras ideias extraordinárias.

Rio quer controlar politicamente a investigação criminal e promover de forma pro-ativa a politização do sistema judicial, visando nomeadamente a redução (ou a extinção) da autonomia do Ministério Público (MP). É isso que significa “pôr ordem nisto”.

Rui Rio anda há anos a querer “pôr ordem” na Justiça porque simplesmente teve problemas pessoais enquanto presidente da Câmara do Porto com várias decisões do MP. Num caso foi constituído arguido e noutro foi mesmo acusado por difamação. Mas houve mais casos em que Rio não ficou satisfeito.

Isto é, o MP — uma magistratura autónoma do poder político e que faz parte do poder judicial — não fez aquilo que Rui Rio queria. E é precisamente isso que é a autonomia do titular da ação penal.

Todo o pensamento de Rio sobre esta matéria é bem reveladora dos perigos e dos efeitos perniciosos para a democracia de propostas como esta.

E o que é “pôr ordem nisto”? Rui Rio nunca o diz mas é acabar com a autonomia do MP e torná-lo orgânica e funcionalmente dependente do Ministério da Justiça, retirando-o constitucionamente do Poder Judicial e integrando-o na administração.

Os procuradores deixariam assim de ser magistrados e passariam a ser meros funcionários. É assim que começa a politização da Justiça: com a funcionalização dos magistrados.

4 Quando a Justiça tem sido cada vez mais eficiente na descoberta dos lados ocultos da política, é quando Rui Rio a quer controlar para combater a ideia de que todos os políticos são corruptos. Será que a condenação de Isaltino Morais, de Armando Vara (por duas vezes), de Duarte Lima, de todos os arguidos do Face Oculta, dos arguidos do caso BPP e BPN são exageros da Justiça? Será que tudo o que foi descoberto na Operação Marquês sobre Ricardo Salgado, José Sócrates, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e outros não tem qualquer relevância pública?

Será que tudo o que conhecemos sobre José Sócrates, devido às investigações judiciais, fazem com que o ex-líder do PS seja, como o próprio proclama, uma vítima do abuso do Estado? No que seria a suprema ironia de alguém que teve o poder absoluto nas mãos e tentou subjugar todos os contra-freios à vontade e desejo do poder executivo.

É isso que nós queremos: ter um soberano absoluto que tudo comanda e subjuga? Um homem forte como Putin, como Orbán, como Trump, como Bolsonaro — todos um pouco à imagem de José Sócrates?

5 Conjugada com essa ideia do soberano absoluto temos também o ataque à comunicação social — outro ódio de estimação de Rui Rio. Se o controlo político da investigação criminal levará à eliminação do escrutínio do poder judicial, também o controlo dos media, eliminado pela raiz, solidificará a ausência de meios de escrutínio eficientes.

Para tal é necessário equiparar o problema da violação do segredo de justiça a problema do regime democrático — como Francisco Assis e outros socialistas e social-democratas de renome fizeram.

Sendo a violação do segredo de justiça muito mais importante do que a má gestão pública, do desaproveitamento colossal dos fundos europeus que já recebemos desde 1986, dos desvios financeiros milionários das obras públicas, da incapacidade de Portugal conseguir investimento direto estrangeiro com escala, dos baixos salários, da perda de poder compra, da subida de juros, etc. etc. etc…

Sendo, portanto, os jornalistas os principais culpados pelos males do país, qual é a solução face à questão da alegada violação de segredo? Aumentar as penas de prisão da violação do segredo de justiça para que o crime já admita a autorização das escutas telefónicas a jornalistas? Passar a fazer buscas domiciliárias e às redações para descobrir as fontes dos jornalistas? Impor multas milionárias a órgãos de comunicação social que violem o segredo de justiça?

Nada disto faz sentido. Tal como na Justiça, o principal objetivo de Rui Rio é partir a espinha aos jornalistas — para os controlar de forma clara. Como tentou fazer no tempo em que foi presidente da Câmara do Porto.

6 Quer o princípio da separação de poderes (que Rui Rio se recusa a compreender), quer a liberdade de imprensa (que é absolutamente desprezada por Rio) são princípios estruturantes do Estado de Direito. É daquelas questões que se ensinam às crianças para que interiorizem o que é a democracia.

É por isso que pensadores, como Popper, sempre viram a liberdade de imprensa como uma defesa da democracia representativa e o jornalismo como um aliado natural do respetivo sistema de freio e contra-freios que tenta encontrar o equilíbrio entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário que marca a democracia liberal.

O mesmo se diga do escrutínio judiciário — essencial na busca do tal equilíbrio do sistema de freio e contra-freios.

A destruição desse equilíbrio seria sempre o resultado de uma reforma judicial ‘à la’ Rui Rio — e a concretização de um objetivo claro para José Sócrates. É por isso que Rio é uma espécie de ‘idiota útil’ de Sócrates mas também de uma minoria ruidosa no PS que partilha algumas das ideias do ex-líder do PSD.

Corrigido o cargo de Hugo Carneiro, que foi secretário-geral adjunto do PSD — e não secretário-geral.