Terras frias das Beiras, Seia e Gouveia há muito que competem entre si. Seia produz o seu conhecido e apreciado queijo amanteigado de ovelha, ou Queijo da Serra, assim como queijo de cabra. Gouveia usa os derivados da ovelha de uma outra forma, tecendo casacos, mantas e sapatos de lã. Ambas as cidades trocam produtos entre si — de Seia saem os queijos, de Gouveia os casacos. Entretanto, porque do boca-em-boca se enche o granel — assim corre o adágio popular, ou assim creio que corra —, Seia começou a vender os seus famigerados queijos para outras localidades também. Rezam os boatos que até para as terras distantes do Porto os queijos viajavam, deliciando e contentando os ougados por uma tosta bem barrada. Com tanta procura externa, Seia começou a enriquecer, e os preços acompanharam esta tendência. Gouveia, em comparação, por lá continuava.
Este inesperado sucesso do queijo de Seia alterou a dinâmica com a vizinha Gouveia. Por um lado, as gentes de Seia tinham agora mais rendimento disponível para comprar os produtos de lã. Mas, por outro, o preço do queijo acabara por subir. As gentes de Gouveia dividiam-se nos alvitres — para uns, o preço do queijo havia-se tornado muito caro; para outros, era agora mais fácil vender os casacos e sapatos de lã. Descontentes com a situação, Seia e Gouveia decidiram encontrar uma forma de tentar resolver a situação. Decretaram então que, independentemente de tudo o que acontecesse no futuro, um queijo amanteigado valeria sempre um par de sapatos de lã, tal como dantes. Este câmbio fixo estabilizava assim a vida das duas cidades, pois os exportadores de Seia continuariam a contar com as importações de Gouveia, e os importadores de Gouveia continuariam a poder comprar o queijo de Seia, para isso bastando exportar os seus produtos de lã.
Entretanto, Seia continuou a desenvolver-se. Investiu em maquinaria, novos processos, formou a sua gente, tornou-se mais produtiva, mais competitiva, e começou a exportar queijo além-Serra e além-fronteiras, até em França o queijo era apreciado. Com isto, muito dinheiro chegou ao concelho, que este foi acumulando. Em Gouveia, não quis o destino partilhar o sucesso dos Senenses. Continuou a vender, ainda assim, mas bastante menos em comparação com o crescimento de Seia. Essas vendas, que sempre haviam trazido rendimento para que Gouveia vivesse bem, começavam a ser insuficientes para as vontades do seu povo, pois embora ainda pudessem comprar os queijos de Seia, tornava-se agora mais difícil comprar outras coisas de outros locais. Outrora, quando as coisas estavam más, bastava esperar e automaticamente a situação acabaria por aliviar: importar queijo seria mais caro, e as pessoas acabariam por deixar de o fazer; exportar os seus produtos era mais barato, e mais dinheiro entrava na cidade. Hoje, com a promessa de que um par de sapatos valia um queijo, tal já não seria possível. Como os queijos ficam mais caros, os sapatos também. Isso não afecta as relações entre Seia e Gouveia, mas afecta com as restantes localidades.
Seia continuava a acumular dinheiro que decorria de tantas exportações. Baixou os impostos, pagou as suas dívidas, e ainda assim sobrava. Então, propôs emprestar parte desse dinheiro a Gouveia, que dele precisava desesperadamente, a juros muito baixos. Ganhavam ambos: Seia recebia um rendimento desse empréstimo; Gouveia teria acesso a financiamento para, quiçá, investir num novo processo produtivo ou até importar mais queijos. Os anos passaram, e Gouveia protelou sempre o investimento produtivo, preferindo o queijo e o caminho asfaltado. O investimento ia-lhe permitir produzir sapatos de lã de forma mais eficiente. Ao fazê-lo, teria mais sapatos para trocar por queijos, que por sua vez poderia usar para adquirir os bens que necessitava. Ao invés, as suas gentes optaram por simplesmente usar os excedentes oriundos de Seia para lhes comprar os queijos, até que já pouco dinheiro lhes sobrava para outras coisas.
Fim. Ou para o propósito que nos serve, consideremos que a estória chegou, ainda que temporariamente, ao fim. Numa interpretação puramente maniqueísta, consegue identificar o mau da estória? Terá sido Seia, que diligentemente orquestrou um plano para vender mais queijos e forçar Gouveia a comprá-los? Ou terá sido Gouveia, que se acomodou ao dinheiro fácil de Seia, achando que o título de empréstimo se estendia ao de préstimo, vivendo assim uma vida regalada sem fazer o devido trabalho?
A resposta não é fácil, porque a estória não permite, ou não deveria permitir, ilações morais. Cada cidade cumpriu com o seu desígnio. Seia melhor, Gouveia pior. Transpondo a estória para a dinâmica europeia, custa-me ver em Seia, ou na Alemanha, um opressor, e em Gouveia, ou em Portugal, um oprimido. Daí que, não obstante a excelente e descritiva análise do contexto macroeconómico que Vítor Bento fez neste mesmo jornal, não consiga concordar com as suas conclusões, especialmente aquelas que conjecturam que as beiras se tornaram mais pobres por causa de Seia, ou, na realidade Europeia, que a Zona Euro se tornou mais pobre devido aos países do Norte, os excedentários, e que a situação actualmente vivida pelos deficitários, os países do Sul, seja culpa dos do Norte. Por outras palavras, subscrevo a análise económica, rejeito a interpretação.
Existem assimetrias que câmbios fixos não podem acomodar automaticamente, é um facto. Como é um facto de que todos os que aderiram ao Euro deveriam estar conscientes disto. E mais conscientes ainda deveriam estar que a desvalorização cambial não resolve nem nunca resolveu nenhum problema estrutural de competitividade — as empresas continuam a produzir igual, igualmente mal se for o caso, tornando-se o bem apenas mais barato em termos relativos. Transitando para a nossa estória, que torna o entendimento mais claro, isto implica que já não existem mecanismos automáticos para que, subitamente, os sapatos de lã sejam mais baratos, assim aumentando as exportações, e os queijos mais caros, assim diminuindo as importações. O ajuste tem de ser feito pela via real. Só produzindo bens de valor acrescentado (um casaco de couro revestido a lã?), ou produzindo melhor (um novo processo de fabrico que reduz o custo unitário do par de sapatos?) é que Gouveia, isto é, Portugal, poderá recuperar a competitividade perdida.
No entanto, e tal não pode ser descurado, existe uma terceira via. Um mecanismo, bem acima das terras de Seia e Gouveia, que transfira os excedentes de uns para compensar os défices de outros, com isto balançando a situação. É o que acontece, com efeito, entre as cidades de Seia e Gouveia. Existe um Estado central que efetua as transferências fiscais necessárias para balançar os desequilíbrios. É o que acontece quando um desempregado de Gouveia vai procurar trabalho a Seia. E é o que acontece entre estados nos Estados Unidos da América. Recordemos, contudo, que, para que hoje assim seja, terá sido necessária uma guerra civil com centenas de milhares de mortos. E que, tal como hoje, os estados excedentários recusavam-se a uma união fiscal, e os estados deficitários apoiavam-na.
A análise de Vítor Bento, devidamente contextualizada, serve o propósito a que se propõe — o de explicar os actuais desequilíbrios macroeconómicos da Zona Euro. Falha, contudo, na construção da narrativa que acompanha a análise. O “excesso de competitividade” que é “subsidiado” pelos “sacrifícios dos Deficitários” é, recorrendo à estória ilustrativa, o sucesso de Seia versus o insucesso de Gouveia, como se o primeiro fosse culpado ou sequer responsável pela inépcia do segundo. Falha, também, ao ignorar que os desequilíbrios de Portugal em muito antecedem a entrada na Zona Euro, embora seja verdade que o problema da dívida externa se terá agravado consideravelmente, reflexo da capacidade de endividamento a baixas taxas de juro, que Portugal aliás nunca soube aproveitar. Desde 1953 que Portugal não tinha um saldo na sua balança comercial, 70 anos que atravessaram o Estado Novo e muitos governos da 3ª República, o que inclui os últimos 15 de Zona Euro.
Se existe uma lição a retirar tanto da análise de Vítor Bento, como do paralelo entre Seia e Gouveia, é que nenhum artifício monetário ou fiscal consegue resolver problemas da economia real. Não serão as transferências fiscais, nem serão regimes de câmbios flexíveis, que conseguirão corrigir os desequilíbrios competitivos de Portugal. Poderão mascará-los, é certo, mas não anulá-los. Recuperando a estória, é tão somente a sua vontade e capacidade de fazer mais e melhores sapatos. Como, aliás, tem feito. Porque, como diriam as gentes das beiras, a necessidade aguça o engenho, como agora Gouveia parece estar a descobrir.
Professor da Universidade do Porto