Será esta pandemia um castigo de Deus? Eis uma pergunta possível. Para alguns, nem sequer chega a ser uma dúvida porque a tomam como certeza. Afirmam-no sem hesitações, mas saberão o que estão a dizer? De que Deus estarão a falar os que apontam para um Criador implacável, castigador, vingativo, capaz de enviar sofisticados vírus à terra para contagiar toda a Humanidade? Que loucura pensar em Deus como um rival, um arqui-inimigo dos homens.
A esta questão responde Tomáš Halík, padre e filósofo checo que se formou clandestinamente, que foi perseguido durante a ocupação comunista e arriscou ser preso por ser considerado “inimigo do regime”. Halík, que viria a receber em 2014 o Prémio Templeton, um dos maiores do mundo atribuídos a pessoas individuais, trabalhou como psicoterapeuta numa unidade de acompanhamento a toxicodependentes e em 1978, sempre na clandestinidade, foi ordenado sacerdote (nem a sua própria mãe o soube), tornando-se num dos assessores mais próximos do cardeal Tomášek, o ícone da chamada “Igreja do Silêncio”. Com o fim do regime comunista, foi nomeado conselheiro do presidente Václav Havel e, posteriormente, Secretário-Geral da Conferência Episcopal checa.
Atualmente, ensina Sociologia e Filosofia da Religião na Universidade Charles, em Praga, e é professor convidado nas universidades de Oxford, Cambridge e Harvard, entre outras. É membro da Academia Europeia da Ciência e da Arte e foi consultor do Conselho Pontifício para o Diálogo com os Não-Crentes. Os seus ensaios e escritos estão traduzidos em numerosas línguas e amanhã vai ser lançado em Portugal o seu mais recente livro, com o eloquente título O Tempo das Igrejas Vazias.
Tomáš Halík afirma categoricamente que não, que esta pandemia não é um castigo de Deus, e vale a pena ler as suas reflexões, feitas ao longo de 2020, para perceber as razões da sua inabalável crença. O novo livro é uma coleção de textos e homilias que escreveu a partir do grande confinamento inaugural, na primeira quaresma em que os templos ficaram completamente vazios. No tempo que ficou marcado por imagens inéditas de um mundo fechado, como que parado, em que reinava a quietude e a ansiedade. Todos recordamos o eco dos passos do Papa Francisco, a caminhar e a rezar sozinho, debaixo de chuva, na praça de São Pedro há quase um ano, no dia 27 de Março. Pela primeira vez na história recente da Igreja não se viam multidões de fiéis, mas, na realidade, muitos milhões acompanhavam os seus passos e rezavam com ele.
Ano após ano, as cerimónias são transmitidas e vistas em todo o mundo, mas em 2020 as audiências e as visualizações dispararam em flecha, batendo todos os recordes. Muitos se sentiram interpelados por este jejum forçado das celebrações, que Halík considera uma manifestação rara da pedagogia de Deus, no sentido em que é uma oportunidade de refletir e aprofundar o sentido espiritual de cada um. “Podemos ter ideias sobre Deus, mas não ter amor a Deus”, diz o padre checo, para quem este tempo de igrejas vazias é uma ocasião para colocar questões essenciais e reformar a própria Igreja. Reconfigurar talvez seja o verbo mais certeiro, nesta era de grandes reconfigurações.
Lembro-me de ter lido noutro livro de Halík que o “homem é incuravelmente religioso”, mas, na verdade, o que víamos antes da pandemia do coronavírus era uma Igreja que se vinha a esvaziar há décadas. Mesmo havendo exceções, conhecemos bem a progressão da secularização das sociedades atuais. Assistimos ao crescendo de populismos e nacionalismos em todo o mundo, vemos a meteórica ascensão dos fundamentalismos religiosos, dos atos de xenofobia e das teorias da conspiração e sabemos que vivemos num mundo inundado de fake news.
“O medo de um mundo complexo foi agora acentuado pelo medo de uma doença contagiosa e das suas consequências económicas e sociais. O assassínio do afroamericano George Floyd por um polícia brutal caiu neste terreno como uma faísca inflamável e desencadeou uma onda de violência e revolta em várias partes do mundo.”
Halík adverte a hierarquia da Igreja Católica para os políticos populistas “que tiram partido de uma atmosfera de medo e incerteza e ganham os votos das pessoas idosas ou com baixo nível de instrução. (…) Se os representantes da Igreja estabelecerem com eles diferentes tipos de alianças, prejudicam tragicamente a Igreja com esta miopia, pois os portadores do futuro destas sociedades, os jovens e as camadas com formação, em particular, começam a afastar-se da Igreja”.
Faz sentido a chamada de atenção, mas esbarra na divisão interna da própria Igreja que, aliás, não é de agora, pois sempre foi palco de muita divisão política, ideológica, cultural e social.
“A situação da Igreja Católica mundial faz lembrar fortemente o período que antecedeu imediatamente a Reforma, o cisma ocidental. A onda de revelações de escândalos de abusos sexuais e psicológicos na Igreja, que eram tabu e foram encobertos durante muito tempo, desempenha um papel semelhante à última gota que, na Idade Média, desempenhou o escândalo com a venda das indulgências. Também então foram desvendados problemas fundamentais num fenómeno aparentemente marginal: o problema da relação entre a Igreja e o poder e da relação entre o clero e os leigos. Nos países da Europa central, um número recorde de crentes abandonou a Igreja nos últimos anos. Temos de ter consciência de que a maioria das pessoas que se afastam das Igrejas não se tornam ateus – algumas deixam-na, precisamente porque levam a fé mais a sério do que a conheceram nas Igrejas.”
Desassombrado como sempre, Halík põe o dedo em todas as feridas e alerta para a urgência de repensar e ajustar a Igreja aos novos tempos. Acredita que a chave desta atualização passa por cultivar uma fé refletida, informada, educada para o diálogo intelectual com uma sociedade predominantemente agnóstica. Acima de tudo, considera essencial cultivar um constante crescimento pessoal espiritual e apostar numa abordagem contemplativa, mas também na ação e no compromisso crescente dos cristãos com a sociedade civil. Um compromisso ativo com iniciativas ligadas à ecologia, à defesa da liberdade e da democracia, contra as visões populistas e xenófobas.
Para Halík é determinante o aprofundamento contínuo da vida espiritual pessoal, pois só assim é possível evoluir. Isto, porque para ele não existe uma grande diferença entre um fundamentalista religioso e um ateu fervoroso quando se põem a falar de Deus. Ambos fazem uma caricatura da fé e um retrato distorcido, porventura abusivo, de Deus.
“A experiência da pandemia reforçou em mim uma opinião para a qual já me inclinava antes, ao estudar a situação religiosa atual: a secularização não consiste numa crise das certezas religiosas, mas de uma crise geral de certezas dos indivíduos de hoje, certezas religiosas e seculares. Se queremos compreender o mundo que está a nascer, e no qual continuarão os fenómenos que acompanham a globalização – como todos os tipos de contágios, inclusive os contágios pelas ideologias políticas dos populistas e fundamentalismo religioso –, devemos deixar de lado inúmeras ideias preconcebidas e padrões de pensamento simplificador, mesmo no nosso pensamento religioso.”
Interpelador e profundamente conhecedor, Tomáš Halík fala para todos, não excluindo ninguém nem privilegiando os que poderia considerar “seus”. Na qualidade de diretor de um projeto de investigação sobre a fé e as convicções dos “não-crentes” (Faith and Beliefs of “Nonbelievers”) que reúne uma equipa de reputados filósofos, sociólogos e teólogos de vários continentes, diz que os resultados obtidos até agora indicam “quão problemático é, neste tempo de ‘abalo de todas as certezas’, classificar as pessoas nas categorias simples de crente/não-crente, pois a ‘fé’ e a ‘dúvida’ estão entrelaçadas de maneira complexa nas atitudes e nas mentes de muitas pessoas de hoje”.
E cita o poeta Vladimír Holan, seu compatriota, por exprimir este sentimento num verso: “O que não estremece, não é firme.” Halík acredita que entre a fé e o ceticismo pode haver “uma valiosa permuta de dons”.
Halík insiste na necessidade de uma reforma, mas adverte para aquilo que poderia ser apenas uma operação de cosmética. “Não pode ser um simples esforço por uma modernização fácil. As tentativas kitsch de adaptar comercialmente a religião ao estilo ‘da sociedade de entretenimento’ existem na Igreja em abundância e são tão estéreis como as tentativas de ignorar a evolução histórica e imitar a Igreja dos tempos passados. A tentativa de plagiar a piedade popular de uma sociedade pré-moderna, que há muito perdeu o seu contexto histórico-cultural, ou de organizar festas litúrgicas barrocas, gera, na melhor das hipóteses, um folclore para turistas, mas mais frequentemente dá origem a um embaraço lamentável.”
É por isto que Halík reconhece o papel da “pastoral categorial” como vanguarda do futuro serviço da Igreja à sociedade no seu todo. Ou seja, o serviço dos capelães nos hospitais, nas forças armadas, nas prisões e nas universidades. Estes missionários clássicos existem, mas só prestam bom serviço se não estiverem apenas disponíveis para as “ovelhas do seu rebanho”. Se estiverem ali para todos, com abertura a cada pessoa, pois todos temos uma dimensão espiritual na nossa personalidade.
Porque de uma forma ou de outra, mais tarde ou mais cedo, todos nos questionamos sobre o sentido da vida e da nossa existência em particular, todos precisamos de alguém com quem falar livre e abertamente sobre essas coisas. “Se a Igreja estiver presente apenas para os seus membros, e não para todos, para a sociedade no seu todo, nunca será levada a sério pela sociedade.”
O maior número de pessoas que não pertencem às Igrejas são os “apateístas”, diz Halík, que explica o conceito: pessoas indiferentes à religião como a imaginam ou como a conheceram. “Mas são também os ‘buscadores espirituais’, os que creem ‘à sua maneira’. São pessoas que colocam a si próprias questões de cariz espiritual, mas que não encontram respostas nas Igrejas e, hoje, já nem as esperam delas. Costumam combinar elementos de diferentes religiões, ‘espiritualidades alternativas’ ou adoram o ‘seu próprio deus’.”
A experiência da pandemia mostrou, no entanto, que em certas situações, até as pessoas que eram indiferentes à religião ou que se distanciavam da “religião organizada” ficam, de repente, sensíveis a temas espirituais e têm interesse em saber o que os cristãos dizem nesses momentos. As suas atitudes de indiferença e distanciamento não são imutáveis. E a prova são as audiências recorde, mais uma vez, de celebrações, debates, fóruns e sessões organizadas por diversos grupos ligados à Igreja, sejam pequenas ou grandes paróquias, centros universitários ou grupos de jovens voluntários missionários que dão testemunho do seu envolvimento ao aderirem livremente a grupos que cuidam dos mais idosos e dos grupos de risco.
Neste sentido, de busca e aperfeiçoamento da vida espiritual pessoal potenciada pela pandemia, Halík manifesta a sua alegria porque os pregadores que antes aproveitavam as catástrofes para assustar os fiéis com visões apocalípticas, desta vez ficaram ausentes. “Receava que abusassem da tragédia da pandemia e começassem imediatamente a apresentá-la como um castigo de Deus. Quando a fé de alguns cristãos enfraquece, ao ver que o mundo não vai na direção por eles esperada, intensifica-se a tentação de substituir o Deus do amor, da fé e da esperança por um velho vingativo que do Além persegue os seus filhos com castigos cruéis, que levariam qualquer pai a ser justamente julgado.”
Aparentemente, a pandemia trouxe uma adesão massiva a novas formas de comunicação da Igreja, reforçando a participação digital e a comunhão espiritual, não dando margem a um retrocesso do Cristianismo nem à culpabilização de Deus.