Esta crónica estava planeada como a segunda da série “Livros para férias”. Mas os melhores planos racionalistas  são frequentemente surpreendidos pela alegria imprevisível da vida real — um ponto que os dogmatismos de esquerda e de direita têm dificuldade em compreender.

Neste caso, o meu plano racionalista de uma segunda crónica sobre “Livros para férias” foi alegremente surpreendido pela publicação da revista semanal britânica “The Spectator” — comemorando o seu 190º aniversário. O aniversário é certamente digno de nota. Parece que é a mais antiga publicação semanal no mundo ocidental (com especial licença do nosso terceiro-mundismo politicamente correcto, talvez mesmo de todo o mundo). Mas, para além disso, esta edição da revista também é digna de nota.

A capa é, desde logo, imbatível. Um cartoon super-divertido com os principais líderes da presente conjuntura britânica, euro-americana e mundial. A seguir à capa, o Editorial é também imbatível. Não seria possível resumi-lo aqui. Mas não resisto a dizer que associa a defesa de uma disposição conservadora com o sentido de humor e de moderação.

Por essa via, recusa as  dicotomias tribais que estão a ser alimentada pela chamadas redes sociais. Sustenta a necessidade de abertura para escutar os sentimentos dos eleitores — designadamente no que respeita aos seus sentimentos de identidade nacional, cristã e ocidental. E defende “a velha tradição britânica de robusta mas amigável discordância”.

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 “The Spectator” é uma expressão típica da originalidade da tradição conservadora-liberal britânica. É por isso muitas vezes difícil de compreender no continente — ou mesmo do outro lado do Atlântico.

Na década de 1840, liderou a campanha pelo comércio livre contra as proteccionistas “Corn Laws”, que foram derrotadas no Parlamento em 1846. Na década de 1860, defendeu com argumentos cristãos a causa anti-esclavagista do Norte na guerra civil americana. Nas duas grandes guerras do século XX esteve sempre patrioticamente ao lado das tropas britânicas. Em Janeiro de 1965, após a morte de Churchill, publicou uma capa memorável com um grande cinzeiro e um charuto apagado e meio fumado.

Estoicamente anti-comunista, abriu as suas páginas, na década de 1980, a alguns dos melhores repórteres — como Anne Applebaum, Tim Garton Ash e Noel Malcom — sobre a revolta anti-soviética na Europa central e de Leste. Defendeu Margaret Thatcher e Ronald Reagan — embora tenha sido contra a entrada britânica na Comunidade Europeia, no primeiro referendo, e a favor da saída, no mais recente. Mantém hoje prudente distância de Donald Trump, ao mesmo tempo que exprime simpatia e compreensão para com os seus eleitores.

Michael Oakeshott (1901-1990) terá produzido um dos mais célebres ensaios sobre a tradição conservadora britânica de que “The Spectator” é uma expressão (“On being conservative”, 1956, incluído no livro Rationalism in politics and other essays, Liberty Fund, 1991). Disse ele que no centro desta “disposição conservadora” não está um programa racionalista mas uma “disposição”: uma disposição para usufruir (“a disposition to enjoy”).

Basicamente, disse Oakeshott, trata-se da disposição para usufruir o nosso próprio (de cada um) modo de vida — que não foi imposto centralmente por ninguém, que foi herdado dos nossos antepassados e que cada um de nós tenta transmitir aos seus descendentes.

Daqui emergem, segundo Oakeshott, vários traços espontâneos do conservadorismo britânico. Desde logo, um gosto de viver na própria casa e de não se meter na vida dos vizinhos — em boa parte com o objectivo de que eles não se metam na sua. Isso também gera um enfático sentido de propriedade e de desconfiança relativamente às burocracias estatais e aos planos desenhados centralmente. Por outras palavras, gera uma predisposição favorável aos arranjos locais, às iniciativas locais e à liberdade da sociedade civil — das famílias, das vizinhanças, das igrejas, das pessoas comuns. Bem como um enfático apego às tradições que evoluíram gradualmente e que passaram o teste do tempo (como a monarquia constitucional britânica).

A.L. Rowse, um excêntrico historiador de Oxford, deu em 1945 uma divertida definição desta atitude (ainda que a tenha associado ao “espírito inglês” e não apenas à “disposição conservadora”):

 “No centro do espírito inglês está a felicidade, uma profunda fonte de contentamento interior com a vida, o que explica o desejo mais profundo do inglês, o de ser deixado em paz, e a sua vontade de deixar os outros em paz desde que eles não perturbem o seu repouso” (The English Spirit: Essays in History and Literature, Macmillan, 1945, p. 36).