Na passada sexta-feira foi decidido pelo Supremo Tribunal do Reino Unido que os condutores de veículos Uber deveriam ser considerados como trabalhadores (ainda que independentes) e não meros prestadores de serviços ou empresários individuais.

Esta decisão teve por base, em suma, os seguintes fundamentos no que concerne à relação entre as partes: (i) a Uber define os preços a cobrar pelo serviço, o que indicia uma determinação, pelo beneficiário da actividade, do montante final que o condutor vai ganhar; (ii) a Uber cobra o valor ao cliente final, retira a sua comissão e paga, depois, ao condutor a sua parte; (iii) a Uber define os termos do contrato e os condutores não podem alterar essas condições, indiciando assim um certo poder do beneficiário da actividade de determinar essas mesmas condições. No que concerne especificamente ao serviço, foi também realçado que (i) a aceitação de viagens pelo condutor é condicionada pela Uber, que o pode penalizar se ele rejeitar muitas viagens; (ii) a Uber controla a qualidade dos serviços dos condutores por meio da classificação por estrelas por parte dos clientes finais e utiliza essa informação para terminar a relação contratual se, após repetidos avisos, a qualidade do serviço não melhorar; por último, foi ainda valorado o facto de a Uber condicionar bastante as comunicações entre o passageiro (cliente) e o condutor, limitando-as ao mínimo necessário para realizar a viagem, impedindo-os de ter uma atitude proactiva, no sentido de evitar que os condutores estabeleçam qualquer relacionamento com o passageiro (alegadamente o seu cliente) que seja apto a manter uma relação estável para além daquela viagem em particular.

Considerando estes e outros factores, o tribunal concluiu pela subordinação jurídica e dependência dos condutores em relação à Uber.

Realçamos também, relativamente ao tempo de trabalho, que o Supremo Tribunal considerou ainda que nestas situações o mesmo não se limita ao tempo das viagens, mas inclui também qualquer período em que o motorista está ligado à aplicação Uber dentro do território em que foi licenciado para operar e está disponível a aceitar viagens.

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De nada serviu a posição da Uber que, em sua defesa, argumentou ser um mero intermediário, equiparando-se, de algum modo a plataformas de reservas em hotéis.

As consequências desta decisão, para além de um enorme balde de água fria no modelo de negócio da Uber e de outras plataformas digitais semelhantes, representa uma factura altíssima a pagar, uma vez que esta equiparação confere aos condutores uma série de direitos (no Reino Unido está, essencialmente, em causa um salário mínimo e o pagamento de férias).

O tema está já a ser discutido internacionalmente em diversas jurisdições, sendo que no contexto comunitário, o comissário europeu do Emprego e Direitos Sociais, Nicolas Schmit, já defendeu que “quando uma pessoa trabalha para ou através de uma plataforma, não deve ser colocada numa situação em que a proteção social ou os direitos laborais básicos não se aplicam”.

A discussão não é nova, tendo originado páginas e páginas de posições quer doutrinais quer jurisprudenciais. No entanto, se até este momento estas orientações se colocavam mais numa perspectiva estática da relação entre Empregador e Trabalhador/Prestador de Serviço, em que os termos são mais ou menos conhecidos e estão já mais ou menos tratados em termos teóricos, a verdade é que esta nova perspectiva de emprego, com pressupostos tão diferentes e maleáveis face às relações tradicionais, saem claramente fora dos cânones normais de decisão.

Por um lado, é verdade que a liberdade do prestador do serviço é limitada por uma série de orientações do beneficiário da actividade, no entanto, há também um grau de autonomia que não se verifica num “trabalhador normal”, sendo comum, por exemplo, que estes prestadores estejam disponíveis, ao mesmo tempo, em mais do que uma plataforma digital.

Ora, a diferença entre os dois regimes é tão significativa e as consequências da integração num ou noutro são tão gravosas para os agentes (seja em termos de aumento ou diminuição dos direitos dos trabalhadores, seja em termos de obrigações fiscais e parafiscais de ambas as partes), que a incerteza que existe em situações de fronteira, como é claramente a dos condutores da Uber, gera um risco económico para todos os agentes envolvidos, pouco recomendável para a estabilidade jurídica que se pretende, seja a empresarial seja a pessoal.

Os tempos mudaram, as formas de interacção entre as pessoas mudaram e, sem dúvida, a economia e o modo como as empresas disponibilizam os seus produtos também mudaram.

Em Inglaterra, onde já existe uma terceira figura entre a mera prestação de serviços e o contrato de trabalho tradicional, o tema continua a gerar polémica e decisões judiciais como a de hoje.

Em Portugal, perante este problema concreto, o regime jurídico do transporte em veículo descaracterizado a partir de plataforma eletrónica, Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, no seu artigo 10º, demite-se de tentar responder adequadamente à questão, limitando-se a empurrar as partes para as formas já conhecidas de contratação. E este é o caso de uma actividade concreta em que a publicidade gerada no seu lançamento obrigou o Estado a legislar especificamente o sector, mas ficando de fora todas as restantes situações que, no mundo digital, também já fogem ao modelo normal das relações laborais.

Ora, perante toda esta mudança no paradigma contratual, cumpre questionar se a legislação laboral, em vez de ficar fechada nas baias que neste momento delimitam as relações entre beneficiários e prestadores de actividade tradicionais, se vai adaptar à nova realidade e criar uma figura jurídica que contemple, por um lado, a necessidade de protecção adequada de todos os intervenientes e, por outro, que crie a segurança e previsibilidade que permita às empresas saber as linhas com que se cosem neste novo mundo de desafios digitais.

Ou seja, vai o Estado, em Portugal, esperar que os tribunais legislem em sua substituição, ou encarar esta realidade e, como lhe compete, criar as figuras jurídicas e as condições para que os agentes económicos possam, com segurança, agir no tráfego jurídico?