No domingo, momentos antes de Pedro Nuno Santos subir ao palco para reconhecer a derrota na noite eleitoral, o quartel-general do PS onde se encontravam alguns dos mais destacados dirigentes socialistas irrompeu em gritos de “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”. O que aconteceu no Hotel Altis não explica tudo, mas ajuda a explicar muita coisa sobre o divórcio que existe entre uma parte do país e o todo. Mais de um milhão de votos depois, há gente no PS – gente importante, presume-se – que continua convencida de que um partido com a expressão eleitoral do Chega é uma agremiação de perigosos fascistas que querem derrubar o regime e que, para os espantar, basta gritar umas palavrinhas, agarrar um cravo vermelho e fechar os olhos com muita força. Não perceberam nada. Pior: parecem não querer perceber.

Em 2016, Hillary Clinton chamou “cesto de deploráveis” aos eleitores de Donald Trump e assinou a sua sentença de morte política. Nesse e no nosso continente, os movimentos populistas com características semelhantes mudaram a paisagem política. Em Portugal, por esta altura, ainda há gente no PS (e à esquerda do PS) que acha que chamar nomes aos eleitores do Chega e maldizer o país em que vive resolve alguma coisa. Além de ser uma reação infanto-juvenil à expressão democrática e livre dos eleitores, é absolutamente inútil. Como tal, convém notar o óbvio: 18% dos portugueses que saíram de casa para votar não são fascistas, nacionalistas, racistas, xenófobos, machistas, defensores da castração química e convictos apoiantes da prisão perpétua.

Existirá, naturalmente, muita gente dessa na enorme mancha humana que fez o Chega passar de um deputado único para 48 parlamentares em cinco anos. Não são todos inocentes, movidos pela ilusão ou pelo engano; há gente que sabe ao que vai e para onde quer ir. E há gente com responsabilidades no Chega que sabe que ilude, mente e manipula deliberadamente. Mas recusar perceber que entre os eleitores que alimentam Ventura há gente, muita gente, frustrada, desiludida, zangada e desesperada com que vai acontecendo ao país e com as nossas instituições é, à falta de melhor expressão, uma imbecilidade.

Aliás, não deixa de ser curioso que, tantas vezes rotulado como sendo imaturo e impreparado, tenha sido Pedro Nuno Santos o adulto naquela sala do Altis ao reconhecer a mais cristalina das evidências: “O Chega teve um resultado muito expressivo que não dá para ignorar. Não há 18% votantes racistas ou xenófobos em Portugal, mas há muitos portugueses zangados que sentem que não têm tido representação”, disse. É um bom sinal. Depois de ter passado dois terços da campanha eleitoral a atiçar André Ventura para fragilizar o adversário direto, tal como fizera António Costa antes dele, pode ser que o PS, através do seu novo líder, perceba finalmente que usar o medo junto de gente que já perdeu a esperança tem efeitos muito limitados.

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Seria igualmente bom sinal se o PS aproveitasse o seu exílio na oposição para assumir a sua quota-parte de responsabilidade pela ascensão do Chega. Sim, André Ventura conseguiu reunir e dar voz a eleitores que sempre existiram em Portugal e que estavam simplesmente subrepresentados. Sim, o Chega é a expressão portuguesa de um movimento internacional, alimentado pelos tempos, que teria de chegar cá inevitavelmente. E sim, a votação de Ventura é um manguito em forma de voto dos que querem dar uma lição e castigar “os políticos”.

Mas o crescimento do Chega é também a manifestação legítima de muita gente que foi esquecida e maltratada pelo país. E é para esses que os partidos moderados têm e devem falar. No caso do PS, um partido que governou 23 dos últimos 30 anos, era bom que essa autorreflexão permitisse retirar lições para o futuro – passar uma campanha eleitoral a falar do Chega e da troika é um programa poucochinho e, como se viu, parece já não ter grande resultado prático.

Agora, é a vez de Luís Montenegro. A missão é difícil, complexa e comporta muitos riscos. Se a direita moderada falhar desta vez, se for incapaz de liderar pelo exemplo, se for incapaz de provar que consegue governar sem ser à lei do corte, se demonstrar a mesma leveza e incúria que o PS tantas vezes demonstrou, a alternância fica em risco. Se o PSD falhar, não haverá muitos mais incentivos para acreditar que o centro-moderado é capaz de se regenerar. E isso é um risco enorme.

A 6 de março, num jantar-comício nas Caldas da Raínha, o líder do PSD e futuro primeiro-ministro fez o seu melhor discurso da campanha. Nessa noite, porventura inspirado pela melhor versão de Paulo Portas, Montenegro decidiu, precisamente, falar diretamente para os eleitores do Chega. Falou em “respeito” e “compreensão” e disse perceber a “revolta” de muitos. “Sei que não são extremistas, racistas e xenófobos. E também sei que acham que o líder deste partido não vai resolver nada e que o programa deste partido não vai trazer soluções. É tempo de reponderarem”, pediu o social-democrata.

Não só não responderaram como houve ainda mais gente a premiar Ventura. Mas, até prova em contrário, parece ser esse o único caminho: respeitar e compreender esses eleitores, falar para eles e encontrar respostas moderadas e eficazes para problemas e anseios que são necessariamente complexos e difíceis de resolver.

Manifestamente, o que tem sido feito até aqui não está a dar resultado. Primeiro, ridicularizaram Ventura. Depois, disseram que era um problema da direita. A seguir, exigiram cordões sanitários. Por fim, trataram-no como um pária. Gritaram contra os pretensos fascistas e acordaram com 48 deputados do Chega. Pode ser que agora percebam que a força de Ventura está nos eleitores e que os eleitores não se conquistam com palavras vãs sobre os valores de Abril; conquistam-se com autoridade moral, soluções concretas e esperança.