Estacionar em Lisboa não é fácil. Nunca foi. Mas é ainda mais difícil quando se tem, em vez do proverbial carro utilitário, uma frota de quinze veículos à medida de uma celebridade americana. É porém para estes casos que existe a Câmara Municipal de Lisboa. Muita gente, no entanto, estranhou ver Fernando Medina no papel de arrumador de carros de Madonna. Para acalmar o povo, a vereação fez constar que afinal Madonna ia pagar o estacionamento: 720 euros por mês. Mas 720 euros por quinze lugares de estacionamento, dá 48 euros mensais por cada carro, no centro da cidade, ou 1,5 euro por dia – um pouco mais do que a singela moedinha. Qual o munícipe que não gostaria de ter uma proposta destas? É uma pena que não sejamos todos ricos, célebres – e estrangeiros, como Madonna. Porque é essa a melhor maneira de apreciar a cidade de Fernando Medina e, já agora, o Portugal de António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa.

O estacionamento de Madonna é uma nota de rodapé no regime que transformou Portugal num paraíso para os estrangeiros. Para nós, os impostos directos mais altos de sempre; para eles, todas as isenções fiscais. Para nós, papelada e complicação; para eles, todas as facilidades. Para nós, os parquímetros da EMEL; para eles, terrenos camarários, a um euro e meio por dia.

Era assim nos antigos países socialistas: infernos de repressão e de escassez para quem lá nascia e que de lá não podia sair – mas locais encantadores para os convidados estrangeiros do progressismo internacional, que de lá vinham entusiasmados com as tardes no Mar Negro ou as noites de Havana. Gabriel Garcia Marquez nunca se queixou de Cuba e o casal Louis Aragon e Elsa Triolet regressava constantemente fascinado da União Soviética. O comunismo, para eles, foi sempre de veludo.

Mas não, não estou a dizer que é a mesma coisa. Ainda não estamos lá, como todos os dias lamentam amargamente os camaradas Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. Também não estou a exigir que tirem as regalias aos estrangeiros: ainda bem que há quem possa disfrutar Portugal sem a praga da nossa burocracia e a assombração da nossa autoridade tributária. O que eu gostaria mesmo é que isso também fosse possível para quem aqui nasceu e não saiu daqui. No fundo, estas excepções criadas para os estrangeiros são uma confissão embaraçosa sobre a falência e a inadequação do regime português. Porque existem? Porque o regime, endividado e dependente de uma das economias mais estagnadas da Europa, precisa do investimento e da despesa dos estrangeiros. Por isso, tenta atraí-los poupando-os à opressão fiscal e burocrática. Muito bem. Mas não precisará o regime também do investimento e da despesa dos nacionais? E para os estimular, não seria conveniente aliviar os portugueses do estrangulamento fiscal e administrativo? Ou isso só vale para os estrangeiros?

Até onde irá o regime de excepção e de privilégio instituído a favor dos que chegam de fora? No século XVIII, os ingleses em  Portugal tinham um juiz especial, eleito por eles, para lidar com as suas questões judiciais, o “juiz conservador da Nação Britânica”. Os liberais, obcecados com a ideia de uma lei igual para todos, aboliram esse foro privativo no século XIX. Mas que acontecerá quando Madonna, em vez de ter de estacionar, precisar de ir ao Campus da Justiça, e descobrir que há-de esperar dez anos para resolver o seu problema? Irá o governo de António Costa premiá-la com uma jurisdição especial, talvez um “juiz conservador das vedetas pop americanas”?

António Nobre escreveu “que desgraça nascer em Portugal”. Talvez seja, mas por outro lado: que bom viver em Portugal – desde que se venha do estrangeiro, claro.

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