Tenho uma certa dificuldade em discutir com quem vive dentro de teorias da conspiração. Tenho uma quase insuperável dificuldade em debater com pessoas inteligentes que se alimentam de visões conspiratórias do mundo. Por isso há vários anos que decidi ignorar as insistentes, obsessivas, provocações de José Pacheco Pereira. Mas acho que ele já escreveu e disse suficientes barbaridades sobre o Observador (e não só) para eu continuar a fingir que nunca vejo nem ouço.

Deixem-me dizer que conheço Pacheco Pereira há muitos, muitos anos. Comecei a ouvir falar dele ainda era adolescente, antes do 25 de Abril, e ele era praticamente o militante mais conhecido do meu minúsculo grupo maoista, o CMLP, no Porto. Naquela cidade a maioria dos maoistas juntara-se na OCMLP, mas ele não. Reencontrei-o anos mais tarde, no início da década de 1980, numa associação de vida efémera chamada Clube da Esquerda Liberal. Daí ele seguiria para deputado independente pelo PSD, de que depois se tornaria militante e dirigente. A primeira vez que fui à sua famosa casa da Marmeleira foi há já 25 anos, era ele presidente da distrital de Lisboa, uma experiência política que terminaria mal: quando tentou a reeleição, ficou em terceiro lugar, atrás de um miúdo chamado Passos Coelho e de Duarte Lima, que venceu essa eleição graças a uma gigantesca “chapelada” na secção de Algés, se a memória não me falha.

Tive muito trabalho, ao longo de vários, para o convencer a ser colunista do Público (ele estava no Diário de Notícias) e defendi-o muitas vezes contra a fúria dos jornalistas, porque sempre estive do lado da liberdade de expressão e do direito à crítica. Mas também sempre soube que tinha as suas obsessões, só que num tempo em que eram raros os intelectuais que escreviam no espaço do centro-direita, ele era ainda uma referência.

Essa realidade começou a mudar muito depressa com o advento da blogosfera, um mundo que Pacheco começou por saudar entusiasticamente e que praticou com determinação e afinco. Só que esse mundo abriria as janelas da notoriedade a muitos novos autores, alguns até inspirados pelo exemplo do político-biógrafo de Cunhal. Acontece é que ele nunca quis companhia – na verdade, eu acho que nunca quis sombra. Onde surgiam aliados na luta de ideias, ele via rivais na batalha do protagonismo mediático.

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“Não é um jogador de equipa, nunca vestirá a camisola do PSD”, disse-me há muitos anos um dirigente do partido quando lhe perguntei porque não tiravam mais partido de Pacheco Pereira, na altura ainda com cargos de direcção. É um retrato certeiro, um retrato que explica tanto porque é que ele estava no grupo maoista que quase não existia no Porto (se estivesse na mais influente OCMLP seriam outros a mandar), que bate certo com alguns desabafos que ouvi a outros membros do Clube da Esquerda Liberal e que encaixa na perfeição na forma como ele se relacionou nos últimos anos com o seu partido.

O mundo de Pacheco Pereira roda à volta de Pacheco Pereira, ponto final, parágrafo.

Na política, Pacheco Pereira comporta-se por regra com a típica superioridade suicida dos intelectuais. Com a rigidez dos que se julgam ungidos pela razão e, por isso, não fazem concessões. Por regra esses perdem combates e eleições. Às vezes ele lembra-me mesmo a rigidez dogmática de Varoufakis, que teria inevitavelmente atirado com a Grécia para fora do euro. Pacheco Pereira ter-lhe-ia dado o braço e ambos teriam marchado a par para o abismo, insultando pelo caminho Aléxis Tsipras.

Sei do que falo pois tive várias conversas com ele em que me explicou o racional de decisões políticas que me pareciam irracionais – como algumas da direcção de Manuel Ferreira Leite, de que ele era o oráculo – e não exagero. Os intelectuais, sobretudo quando convencidos da sua superioridade, são extremamente perigosos em política.

Mas são ainda mais perigosos quando centrados na sua própria figura, porventura no seu próprio umbigo. Por isso é que Pacheco abdicou da sua coerência intelectual quando chegou a hora das suas guerras pessoais. Em 2005, por exemplo, ele defendia que o PSD devia ter um posicionamento mais liberal, escrevendo que “precisamos de mais liberalismo, de mais liberdade económica, de mais espírito empresarial”. Mas não só, ia mais longe, pois considerava que era preciso “crise” e insegurança para mudarmos (até citava Schumpeter), pois sem uma sacudidela “afundamo-nos, pouco a pouco, na manutenção, geracionalmente egoísta, de um modelo social insustentável a prazo e que nos condena a definhar”.

É extraordinário recordar estas palavras à luz do que Pacheco Pereira depois escreveria, diria, gritaria, quando a verdadeira crise chegou mas não era ele, nem nenhum dos dele, que estava à frente do PSD, mas sim um dos seus “ódios de estimação”. A partir daí o egoísmo geracional mudou de polaridade, o liberalismo passou a ser designado por “neoliberalismo” – a gíria de todos os anti-liberais – e naturalmente a crise, a verdadeira e não a fictícia, deixou de ser uma coisa relevante.

É também mirabolante a cambalhota que deu para passar a considerar o PCP e o Bloco como “partidos democráticos”, algo que acontece apesar de, como escreve, ambos partilharem “uma teleologia da história e por isso há quem esteja na vanguarda e quem esteja na retaguarda, ou seja, não é a qualidade universal da cidadania que transporta a igualdade, mas sim a ‘classe’”. Pacheco sabe onde é que essa teleologia (ou essa “miséria do historicismo”, como lhe chamou Popper) levou e leva, mas passa uma esponja por cima, não lhe importando que esses partidos não olhem todos os cidadãos como iguais, algo que logo a seguir já não tolera ao Chega.

Porquê estes saltos lógicos, estas incoerências? Porquê esta necessidade de estar de bem com os partidos da geringonça (citei um exemplo, há mais) e de mal com todos os demais?

De novo encontro na evolução de Pacheco Pereira mais preocupação consigo e com a sua obra do que com o rigor intelectual. Indo directo ao assunto: como notei a seu tempo, conforme a biografia de Cunhal foi avançando, e mais um volume saía, mais esterilizada e inócua esta nos surgia. O autor parece ter desejado o acesso a arquivos que o PCP (e os seus dirigentes) têm fechados, e por isso a obra foi-se tornando quase asséptica. Escrevi isso em 2016, estava longe de imaginar onde nos levaria o desenrolar desta lógica de normalização dos radicalismos de esquerda.

Ao longo dos anos houve contudo um ponto em que nós os dois nunca estivemos de acordo: a visão conspirativa que José Pacheco Pereira tem dos jornalistas e da forma como funcionam as redacções. Muitas das críticas que faz – ou que fazia – ao jornalismo português eram pertinentes, mas nunca percebeu que uma redacção não funciona como um partido e que não existem nela os mecanismos de comando e controlo típicos de organizações burocráticas e centralizadas.

Também por isso a forma como desde a primeira hora olhou para o Observador pode, na melhor das hipóteses, ser comparada com as elucubrações conspiratórias de um Steve Bannon. Eu sei que Pacheco não é dos que leva a sério o que se escreve, pois acha que há sempre agendas escondidas, mas de facto bastar-lhe-ia ter lido o que se escreveu na primeira hora do primeiro dia deste projecto para verificar que, sete anos passados, não enganámos ninguém sobre o que nos motivava como jornalistas e como fundadores do Observador.

Mas não. Ainda hoje tem dificuldade em sequer consultar a ficha técnica – ele que é tudo menos um infoexcluído –, pois nesse minuto deixaria de poder escrever, por exemplo, que somos “um braço armado de um lóbi empresarial”. Não é uma questão de ser verdade ou mentira — é já tão delirante que entremos no domínio da ofensa à inteligência.

No entanto, o que seria de José Pacheco Pereira sem obsessões, sem ódios de estimação e sem teorias da conspiração? Hoje em dia a Marmeleira e suspeito que pouco mais.

E é esse verdadeiramente o problema que ele foi criando com ele próprio. Ele sabe que eu sei que ele costumava dizer que a “prova do algodão” do comentário político era comparar o que se tinha escrito com o que na realidade se tinha passado uns meses ou uns anos depois. É certo que quem escreve nos jornais invevitavelmente se engana aqui ou além, mas ele costumava usar essa “prova do algodão” para desvalorizar como um todo as análises de Marcelo Rebelo de Sousa, que na sua perspectiva quase nunca resistiam à passagem do tempo.

Ora ele sabe que eu sei que ele sabe que as dele também não resistiram. Pelo contrário: azedaram.