Caro Guardian,

Estava para escrever a minha crónica desta semana sobre uma catástrofe global (não, não “essa”, outra), mas li ontem este artigo no Observer (isto é, no Guardian online) e deu-me vontade de responder. A tal catástrofe global pode ficar para outro dia… espero eu. Bem, todas as crónicas poderão perder a sua razão de ser até à próxima semana, com “essa” catástrofe à vista, mas tentemos ser optimistas.

Há três anos que o Guardian escreve liricamente sobre Lisboa. O Guardian é o jornal britânico com mais influência no que diz respeito ao jornalismo de viagens (tenho notado o que acontece no sector do turismo urbano quando o Guardian menciona alguma coisa, por comparação com outros jornais britânicos). Por isso, os vossos trabalhos sobre esta cidade têm tido um impacto forte, em número de visitas e no interesse que provocam na restante imprensa mundial. Bravo! Portugal está em apuros financeiros, e por isso, suponho que posso agradecer-vos, em nome de Portugal e de Lisboa. Suponho.

Hoje em dia, ficar na moda tem logo efeitos fortes e feios. O centro de Lisboa está hoje significativamente diferente do que era há três anos, para o bem e para o mal. A mudança tem sido tremenda e parece imparável, mas talvez a culpa não seja vossa. Afinal, estavam apenas a tentar ajudar e a ser simpáticos. Ainda a semana passada, publicaram um artigo chamado “O Melhor de Portugal Rural: dicas de leitores”, no qual os vossos leitores (que não têm de respeitar os mesmos critérios de rigor jornalístico, nem incorrem nas responsabilidades por causa das suas dicas) deram ao mundo notícia de uns certos lugares pouco conhecidos de Portugal.

Seria óptimo podermos partilhar o turismo mais igualitariamente pelas várias regiões de Portugal, em vez de estar tudo concentrado em Lisboa, no Porto e no Algarve. Porque se Lisboa estava a precisar de ajuda, o resto do país está com problemas ainda mais graves, e dar-lhe-ia jeito encontrar mais umas maneiras de ganhar a vida. Tudo bem, então, a não ser que Ponte da Lima se torne uma repetição de Lisboa e do Porto.

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Contudo, o artigo de ontem, mais do que qualquer outro artigo que li no Guardian sobre Portugal e sobre Lisboa, fez-me comichão nos dentes. Pergunto: já que adoram este país assim tanto, porque não contratam um correspondente que viva cá (e não em Espanha), que fale a língua, perceba o país e fosse capaz de dar notícias realistas sobre este lugar maravilhoso? (e não, não estou a pedir emprego!)

O autor do artigo, o crítico de arquitectura do Observer, Rowan Moore, parece ter absorvido cada palavra que saiu da boca do “suave” secretário de estado da indústria, João Vasconcelos, o suspeito do costume nesta espécie de peças jornalísticas. João Vasconcelos tem, como seria de esperar, um interesse óbvio em promover a cidade, porque dinheiro é dinheiro. Também tem interesse em proclamar que o seu chefe, o primeiro ministro, é um ser maravilhoso.

Eis o que Rowan Moore conta, provavelmente a partir dessa fonte: “Enquanto presidente da câmara, Costa acabou com os obstáculos burocráticos, encorajou os empreendedores criativos e técnicos e deu um grande impulso ao turismo. Tornou mais fácil fundar empresas ou hotéis em prédios históricos. Criou programas para ensinar ‘coding’ a alunos e desempregados. Iniciou Startup Lisboa no centro da cidade então moribundo, um espaço onde negócios novos podiam começar, dirigido hoje pelo, agora secretário de Estado, Vasconcelos”. Rowan Moore chama a isto tudo o “Renascimento de Costa”. Quem é que em Portugal fazia ideia de que o actual primeiro ministro era o único responsável por este milagre económico? A maior parte de nós não sabia.

Rohan Silva é o outro suspeito do costume. Inexplicavelmente, é muitas vezes entrevistado sobre o tema de Lisboa, talvez porque tenha interesse em promover o seu negócio de “co-working”. Como vive em Londres, sabe tudo sobre Lisboa e Portugal. Assim, conta-nos que o governo de Costa é “popular e favorável ao empreendimento”. Sim, tão popular que precisou de formar a geringonça com o PCP e o Bloco de Esquerda para se tornar primeiro ministro, e, como todos sabemos, não há ninguém mais favorável aos empresários do que o PCP e o Bloco de Esquerda.

Outros entrevistados também contaram como tudo é maravilhoso por cá, desde o “surf” até as pessoas (“incríveis”). São americanos, franceses e ingleses, provavelmente conhecendo duas ou três palavras de português (peço imensa desculpa, mas sou realista… gostava muito de estar errada nisto), e têm todo o interesse em atrair mais gente como eles a Lisboa, para ter mais gente que fala a versão de inglês internacional ao pé. O paraíso fiscal de que beneficiam durante dez anos deve ajudar a criar essa sensação de que tudo é maravilhoso em Lisboa.

Depois, há a expectativa ingénua de que, para a “classe global criativa”, Lisboa é a nova Meca. Bem, os “criativos” terão muita sorte se encontrarem uma casa por menos de €2000 de renda mensal, caso queiram viver no centro da cidade em vez de nos subúrbios. Sorte a eles, digo eu, enquanto os lisboetas são empurrados cada vez para mais longe do centro. Um entrevistado americano revela que veio para Lisboa pelo “baixo custo de vida e pelos baixos salários”. Ah, estamos a ver: mão de obra barata e surf. Simpático.

Bem, no fim do artigo, o autor tenta fazer algum equilibrismo, e explica que há pessoas que não estão de acordo com tudo isto. Mas terá sido tarde demais. Aposto que antes de chegarem ao fim do artigo, já muitos leitores terão comprado os seus bilhetes só de ida para Lisboa, para usufruírem do melhor lifestyle do mundo, para interagirem quase nada com o Portugal genuíno, sem nunca terem de aprender a língua, e, claro, para aproveitarem o paraíso fiscal. Boa para eles.

Ó Guardian, normalmente manténs o teu compromisso com o jornalismo de qualidade, e é por isso que muitas pessoas, até as de outras persuasões políticas, têm a maior estima por ti. Por isso, se fazes favor, acaba com estas “puff pieces” com pouca informação válida, porque estás a mexer com a vida das pessoas nesta cidade.

Obrigada.

Beijinhos e abraços, Lucy Pepper (britânica, da “classe criativa” (bah!), a viver em Portugal desde o século passado, e que fala “the bloody” língua).

(tradução do original inglês pela autora)

A letter to The Guardian/Observer about Lisbon.

Dear The Guardian

I was going to write my column this week about a global catastrophe (no, not “that” one, another one), but yesterday I was pointed to this article and felt compelled to respond. The global catastrophe thing can wait for another day… I hope. Hell, all columns may be rendered moot by this time next week, with “that” global catastrophe looming, but hey, let’s remain optimistic, shall we?

For about the last three years, the Guardian has been waxing lyrical about Lisbon. Since the Guardian is the most influential of all the British newspapers when it comes to travel journalism (I have dealings in some touristic activities, and I know what happens when something gets Guardian’d, compared to the rest of the British press), your coverage of this city has had a strong effect, in terms of visitor numbers and wider press interest. Bravo! Portugal is on its uppers, so, on behalf of Portugal and Lisbon, thank you. I suppose.

These days, the effects of becoming fashionable come about thick and fast. Lisbon’s city centre is significantly altered from three years ago, in good and bad ways, the rate of change exponential and seemingly unstoppable, but that’s not your fault, you were just part of the catalyst and I know that you were just being nice. Just last week you produced an article called “The best of rural Portugal: readers’ travel tips” where readers (who have no need for journalistic integrity and who bear no responsibility for any effects their “tips” might have) told the world about the hidden bits of Portugal no one has ever heard of. I’m all for tourism being more evenly distributed through the country, for while Lisbon was in need of a bit of help, the countryside is in desperate need, and needs new ways of making an income, so all good, I suppose, unless Ponte da Lima gets overrun throughout the year, and not just August.

However, this morning’s article, more than any I have read in the Guardian about this country and this city, made my teeth itch. Since you love this place so much, could you not hire a correspondent who actually lives here (not Spain), who speaks the language, understands the country and can give your many readers a realistic account of what goes on here? (no, I’m not asking for a job!)

The author of the article, the Observer’s architecture critic, Rowan Moore, seems to have absorbed everything that the “suave” secretary of state for industry, the usual suspect for this type of piece, João Vasconcelos, has told him. Vasconcelos has a vested interested in promoting this city, of course, because money is money is money. He also has a vested interest in telling the author how marvellous his prime minister, previously mayor of Lisbon, is. Presumably, he might have been the source for what Moore writes here: “As mayor, Costa swept aside bureaucratic obstacles, encouraged creative and tech entrepreneurs and boosted tourism. He made it easier to open businesses or hotels in historic buildings. He set up programmes for teaching schoolchildren and the unemployed how to code. He created Startup Lisboa in the then moribund centre of the city, a place where fledgling businesses could find their feet, run by now-minister Vasconcelos”. Rowan Moore calls it the “Costa Renaissance”. Who knew that António Costa was solely responsible for this economic miracle? Not most of us here, that’s for sure.

Rohan Silva, another, and inexplicably so, usual suspect interviewed on the subject of Lisbon, who has a vested interest in filling up his Lisbon co-working space and who knows all about Lisbon and Portugal, as he is based in London, tells us that António Costa’s government is “popular and pro-enterprise”. Yes, so popular that he needed to form a coalition government with the communists to get himself into the job… and communists, so famously pro-enterprise. Other interviewees, who have told the author how marvellous everything is, from “the surfing” to the “incredible” people, all have a vested interest in getting more people here that are like them, because they are American, French and British and have probably 3 words of Portuguese between them (sorry, but I’m being realistic, I’d be delighted to be proven wrong). They want this place populated by people who speak “international English”, of course they do. Their ten year tax break gives that feeling of everything being “marvellous” an extra kick, too.

Then there is the ingenuous expectation that for the “global creative class” Lisbon is the new Mecca. They’ll be lucky if they can find somewhere to live for less than €2000 a month if what they desire is Lisbon and not suburbia. Good luck to them, I say, while everyone else is pushed further and further out of the city. The American interviewee claims he came for the “low cost of living, low wages”. Ah, I see, pure exploitation, plus surfing, then. Nice.

Ok, by the end of the article, the author tries to even it up a bit, and let’s us know that there are some people who aren’t entirely behind all of this, but I guarantee that by about half way through the article, a whole bunch of people will have booked their one way ticket to Lisbon for the ultimate lifestyle, interacting to an almost zero degree with actual genuine Portugal, never learning the language, and enjoying a massive tax break. Yay them.

Guardian, you generally uphold your responsibility to quality journalism, and that is why you are so highly regarded, so, please, could you stop with the inane ill-informed puff pieces about a city where you are messing with people’s lives?

Thank you.

Lots of love, Lucy Pepper,

(British, of the “creative class” (ugh), in Portugal since the last century, speaks the bloody language)