Quando me dei conta, com o estupor costumeiro dos ingénuos, da possibilidade muito real de um acordo entre o PS, o Bloco e o PC, os meus pensamentos foram naturalmente negros. Mas, a pouco e pouco, a minha simpatia pelo mundo foi-se alargando e apanhei-me a experimentar alguma compaixão pelos militantes do PS. Porquê? Porque, a dar-se essa última e definitiva queda do Muro de Berlim que António Costa anunciou ao Financial Times, materializada na aliança entre socialistas, bloquistas e comunistas, muitos problemas de entendimento surgirão entre a gente do PS e os camaradas do PC e do Bloco. Sobretudo problemas conceptuais respeitantes ao fundo teórico que Bloco e PC apesar de tudo partilham. Por isso, decidi-me a fornecer aos socialistas algumas indicações gerais sobre a linguagem e os conceitos de quem com eles aparentemente se coligará. Tome-se isto como uma contribuição pessoal para as “pontes à esquerda” de que tanto se fala.
Em primeiro lugar, convém perceber-se – de uma vez por todas, como dantes os comunistas gostavam de dizer – que há um sentido da história. “Sentido” numa acepção forte: uma direcção e uma inteligibilidade. A história é inteiramente compreensível à luz de uma particular ciência. A ciência em questão chama-se “materialismo histórico” e mostra como tudo o que acontece no mundo histórico decorre de uma necessidade irrepreensível, em tudo idêntica à da natureza. A história dirige-se para a realização do comunismo. O socialismo não é senão uma etapa provisória em direcção ao comunismo. Quem quiser ficar pelo caminho, vai direitinho para o caixote de lixo da história.
O “materialismo histórico” é acompanhado de uma teoria do conhecimento, o “materialismo dialéctico”. Esta doutrina afirma, grosso modo, pelo menos numa das suas mais influentes versões, que toda a ciência é uma “ciência de classe”. A ciência burguesa deve ser negada. Ela é abstracta, naturalista, e persegue o enganoso fantasma da objectividade. O materialismo dialéctico anula todas as ciências parciais, da filologia à matemática. Anula todo o “pensamento burgês”. E, naturalmente, lança uma vasta dúvida sobre os conhecimentos de quem não esteja na sua posse. Não há ciência ingénua: toda a ciência é, repita-se, ciência de classe.
Quem é o fiel depositário da ciência? O Partido (com a devida maiúscula, é claro). A ciência da história (tal como a ciência do conhecimento) não pode ser conhecida senão por aqueles que ao seu estudo se dedicam: os membros do Partido. Só os membros do Partido se podem encarregar de injectar inteligibilidade nas “massas”. As massas são puro instinto e não podem senão, deixadas a si mesmas, desenvolver uma consciência parcial, respeitadora da “democracia formal”. Dito de outra maneira: caem com facilidade no “cretinismo parlamentar”. O parlamentarismo, tal como a democracia formal, podem por vezes ser úteis, mas não convém nunca esquecer o seu carácter intrinsecamente provisório.
Dir-se-á que esta linguagem e estes propósitos não são de todo visíveis na linguagem do Bloco e do PC. E que, portanto, é uma falsificação ideológica o que aqui proponho. Falso. Esta linguagem e este pensamento subjazem, nunca negados, às versões mais sofisticadas, ou simplesmente menos dogmáticas, que por aí se ouvem. O chamado “marxismo vulgar” tem em certas mentes vida longa. Raspada a superfície, são estas as convicções profundas, e perfeitamente anti-democráticas, do Bloco e do PCP. Formam o núcleo duro das suas crenças e inspiram-lhes um sentimento de superioridade moral que não tem equivalente em partidos como o CDS, o PS ou o PSD.
E, de caminho, permitem-lhes igualmente viver com uma monstruosa boa consciência os compromissos passados com as mais variadas formas de totalitarismo comunista (admitindo que a palavra “totalitarismo” é a boa) que o século XX conheceu. Quer dizer: o peso de milhões e milhões e milhões de mortos é-lhes leve. Não foi por acaso, foi por coerência ideológica, que Bernardino Soares, há uns anos, assegurou não estar certo que a Coreia do Norte não fosse uma democracia. E refiro-me a ele apenas por se ter falado muito daqueles propósitos. Poderia dar um sem número de outros exemplos.
Não vejo muito bem a maioria dos votantes do PS (já me aconteceu – há muito, admito – pertencer à classe) a crer de olhos fechados na necessidade de todos os acontecimentos históricos, ou na distinção entre uma ciência burguesa e uma ciência proletária, ou ainda no absoluto saber de um partido, como o Partido Comunista, que adivinha o futuro das sociedades humanas. Mas se for para a frente o belo casamento que António Costa anda a cozinhar, é bom que as bases socialistas saibam o fundo do pensamento de com quem se vão meter.
É claro que o que disse atrás foi muito esquemático e simplificador, embora longe do caricatural. E que é tudo menos uma apreciação do por vezes muito rico pensamento de Marx e de vários marxistas ao longo da história. Mas é uma descrição sucinta razoavelmente fiel do baixo latim que habita a cabeça de muita gente ainda hoje. Por essa razão, se nos orgãos dirigentes do PS, entre os que acompanham Costa, alguém houver que, em função dos futuros entendimentos partidários que se adivinham, precise de alguns esclarecimentos sobre estas matérias, ofereço-me desde já para uma exposição mais longa, com todos os detalhes requeridos ilustrados por citações sábias. A troco de dinheiro, é claro. Apesar de tudo, a possibilidade dos benefícios do poder obtido por tão esquisito modo, antes que as pedras sobrantes do Muro de Berlim nos caiam na cabeça, isto é, antes do praticamente fatal retorno da famigerada troika, vale bem o dispêndio com alguma educação.