Em Portugal os debates sobre política externa são negligenciados. Contudo, como lembrava Humphrey Appleby na série “Sim, Primeiro-Ministro”, “a diplomacia é sobre sobreviver até ao próximo século e a política é sobre sobreviver até sexta-feira à tarde”.

Não podemos subestimar a importância da política externa no nosso país e o seu impacto nas nossas vidas. Só nos últimos 50 anos – período de tempo do atual regime democrático – tivemos de lidar com duas distribuições de poder ao nível do sistema internacional – bipolaridade e unipolaridade –, com o atual processo de transição de poder, com a expansão e o declínio da ordem liberal internacional, com as revoluções democráticas na Europa de Leste, com a queda do muro de Berlim, com a reunificação da Alemanha, com a implosão da URSS, com o fim da Guerra Fria, com a criação da União Europeia, com o 11 de Setembro de 2001, com a escalada da competição estratégica Estados Unidos/China/Rússia e com as Guerras na Ucrânia e no Médio Oriente.

No mesmo período de tempo, e no que diz respeito especificamente a Portugal, podemos constatar que alguns assuntos de política externa contam-se entre os mais relevantes, desde a transição de Macau e a Independência de Timor,  passando pelo acordo de paz de Bicesse e as presidências portuguesas do Conselho da União Europeia, até  à designação de portugueses para altos cargos internacionais, como o de Presidente da Comissão Europeia, o de Secretário Geral e Presidente da Assembleia Geral da ONU, o de Diretor-Geral da Organização Internacional para as Migrações, entre outros.

Tudo isto concorre para uma conclusão primordial: Portugal precisa de ter uma política externa com coluna vertebral e que não ande à deriva, ao sabor do politicamente correto.

Para isso, tem de se compreender à partida que, muito embora a criação das estratégias de política externa nem sempre obedeça ao pressuposto segundo o qual deve ser a posição internacional relativa de um Estado a definir a trajetória do principal da sua ação, no caso português é sobretudo este o princípio que tem regido as grandes opções do nosso percurso externo ao longo dos tempos.

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Assim, fatores como a localização geográfica, os recursos que esta lhe proporciona (ou a falta deles) e a distribuição de poder no sistema internacional e regional têm resultado na consolidação das grandes constantes da política externa portuguesa, sem que as contingências da política interna, incluindo as mudanças de regime, tenham, salvo raras exceções, intervindo decisivamente enquanto elementos de rutura.

É isto que explica uma das caraterísticas mais salientes da política externa portuguesa e que consiste na sua extraordinária continuidade. De facto, constatamos isso mesmo quando olhamos para os programas de Governo desde a instauração do regime democrático uma vez que eles nunca variam muito nas suas propostas, mesmo sendo interessante constatar diferenças de linguagem utilizada desde os primeiros executivos constitucionais até aos mais recentes.

Logo no programa do primeiro governo constitucional podemos encontrar os temas recorrentes da política externa portuguesa: a integração europeia, a NATO, os Estados Unidos, a relação com os países de língua portuguesa, o relacionamento bilateral especial com a Espanha, o Reino Unido e o Brasil, a importância das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo.

De resto, essa continuidade é muita mais antiga do que o regime democrático e muito mais de fundo, assentando no permanente equilíbrio que mantemos entre a terra e o mar, entre a Europa e o Atlântico. A Europa é o espaço de inserção geográfica do país e o seu primeiro espaço de inserção geopolítica, mas o Atlântico é, na feliz expressão de Jorge Borges de Macedo, “a compensação vinda pelo mar que atenua a pressão continental terrestre”.

Qualquer boa estratégia de política externa, qualquer programa de governo de negócios estrangeiros que se preze, tem de reconhecer a impossibilidade nacional de escolher entre as circunstâncias europeias e as circunstâncias atlânticas, pois, se escolher as primeiras fica sujeito a uma enorme pressão da fronteira terrestre sem compensação vinda pelo mar, e, se escolher as segundas, fica sujeito à retaliação por parte das potências continentais.

Em concreto, tal traduziu-se no tempo longo na existência de dois eixos fundamentais da nossa estratégia externa – o europeu e o atlântico – aos quais se juntou mais tarde o lusófono. O eixo europeu é atualmente o que assegura a congruência essencial entre os valores da democracia, da modernização da economia e da sociedade e do estado social, destacando-se a integração europeia e a opção estratégica de fazer parte do “núcleo duro” da União Europeia. O eixo Atlântico é hoje o que assegura a defesa nacional assumindo particular importância as relações com os EUA nas duas dimensões vitais para Portugal: a aliança multilateral institucionalizada na NATO e a aliança bilateral traduzida no Acordo dos Açores. O eixo lusófono é o que assegura a singularidade portuguesa e distingue o país de todos os outros.

Esta extraordinária continuidade de muito longo prazo só é possível devido a outra caraterística essencial da política externa portuguesa, muito concretamente a existência de um consenso nacional entre os partidos que têm governado Portugal em matérias internacionais.

Como a extensa literatura existente sobre este assunto demonstra, o consenso nacional é a chave da viabilidade da política externa de qualquer Estado, sendo isto ainda mais verdade no caso das pequenas e médias potências. Em rigor, trata-se de mais do que consenso. Como escreveu Borges de Macedo, “a política externa de um pequeno país (…) obriga ao que podemos chamar a consciência internacional de uma comunidade”.

No caso de Portugal, o consenso sobre a política externa é mesmo essencial para a viabilidade nacional devido à nossa crónica condição de Estado Exíguo e Exógeno.

A assunção de que somos um país relativamente pequeno, com escassez de recursos e uma alta dependência do exterior, tem de ser o ponto fulcral de qualquer estratégia de inserção internacional. Desde praticamente a fundação do país que somos dependentes do exterior para a nossa segurança, para o nosso desenvolvimento socioeconómico e até para alimentarmos o nosso povo. Tudo isto é agravado pela nossa persistente condição de Estado altamente endividado ao exterior.

Desta condição de Estado Exíguo e Exógeno decorre uma das caraterísticas estratégicas mais importantes de Portugal, como seja a necessidade constantes de alianças externas como forma justamente de garantir a segurança e a viabilidade nacional.

A necessidade constante de alianças externas traduziu-se historicamente na fórmula clássica da “Dupla Aliança”: a aliança com a grande potência europeia e a aliança com a grande potência marítima atlântica.

Quis o destino que numa grande parte da nossa história a função da “Dupla Aliança” fosse conseguida apenas com a Aliança Inglesa – dada a sua condição simultânea de maior potência europeia e maior potência marítima atlântica. Quis a Guerra Fria que, geopoliticamente, os Estados Unidos fossem essencialmente uma potência europeia e, desse modo, pudessem substituir o Reino Unido nessa função da política externa portuguesa.

Mas com o fim da Guerra Fria e a reunificação da Alemanha a questão da “Dupla Aliança” voltou a ser premente, traduzindo-se desde então na Aliança com os Estados Unidos (a grande potência marítima atlântica) e com a Alemanha (a grande potência europeia).

Perante este quadro geral de longa duração é difícil compreender a política externa do atual governo, aspeto agravado pela conjuntura internacional da atualidade.

Temos assistido nos últimos anos a uma gradual, mas significativa, mudança na estratégia de inserção internacional de Portugal que parece ir buscar inspiração às antigas conceções de neutralismo, não alinhamento e terceiro-mundismo dos tempos pós-25 de Abril, agora recuperadas pelos adeptos das Teorias Críticas, crescentemente influentes em algumas universidades nacionais.

De acordo com elas, o nosso país é visto como uma ponte entre o Norte e o Sul (agora chamado de “Sul Global”), entre Europa, África e América Latina e mesmo, nas versões mais radicais, entre as democracias e as potências não democráticas. Através do conceito de “Plasticidade” ganha força a visão de um “país mediador”, capaz de falar com tudo e com todos, passando os Estados a ser tratados todos por iguais.

Para além de irrealista isto é também errado. Ignora as constantes e linhas de força da nossa política externa, enfraquece a nossa posição internacional e ainda pode colocar em risco o referido consenso nacional em questões externa.

É preciso regressar às bases fundamentais da política externa portuguesa, à sua coluna vertebral. Estas assentam, desde logo, na nossa especificidade enquanto país euro-atlântico, situado no extremo ocidental da Europa e tendo o Atlântico como segunda fronteira, o que faz com que a relação transatlântica seja para nós mais importantes do que para qualquer outro país. Somos também membros de três alianças: União Europeia, NATO e aliança bilateral com os EUA traduzida no acordo dos Açores. Temos a aliança mais antiga do mundo com o Reino Unido e com ele fazemos parte do grupo das potências atlânticas. Temos uma relação especial com os países de língua oficial portuguesa. Somos uma democracia e reconhecemos a legitimidade especial que as democracias têm nas relações internacionais.

O choque entre a visão de política externa inspirada pelo neutralismo e o terceiro-mundismo e esta visão Realista é desde logo visível nos casos da Guerra da Ucrânia e da Guerra Israel-Hamas, sendo difícil compreender em ambos os casos determinados aspetos da política do governo socialista.

No caso da Guerra da Ucrânia, não obstante o auxílio dado aos ucranianos ao nível militar, na questão da adesão do país à União Europeia optámos pela via francesa de colocação permanente de dificuldades em vez de alinharmos com a posição largamente maioritária de apoio inequívoco. Mesmo a Alemanha acabou por se tornar uma forte apoiante dessa solução depois de uma hesitação inicial. Recorde-se que, ainda em junho de 2022, o Primeiro-Ministro António Costa dizia que a concessão à Ucrânia do estatuto de país candidato à adesão tinha “muitos problemas” e que “não estava convencido de que era o melhor caminho”.

No caso de Israel, optámos por votar a favor uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que nem foi capaz de condenar o ataque terrorista perpetrado pelo Hamas a 7 de outubro, votando de forma diferente dos Estados Unidos (que votaram contra) e da Alemanha (que se absteve). Acresce que votámos num sentido distinto da maioria dos países da União Europeia (abstenção) e de todos os Estados atlânticos mais relevantes, como o Reino Unido, a Holanda, a Dinamarca e a Islândia. E ainda desperdiçámos a oportunidade de nos distinguirmos internacionalmente da Espanha.

Mas o problema é ainda mais de fundo. As potências totalitárias revisionistas, como a Rússia, o Irão e a Coreia do Norte, estão empenhadas em aproveitar o fim da estabilidade unipolar para atacar em várias frentes a Ordem Internacional Liberal e Democrática. O projeto de paz, liberdade, democracia, estado de direito, direito internacional e direitos humanos a que dedicámos grande parte das nossas vidas está hoje existencialmente ameaçado.

Assim, mesmo recusando divisões binárias simplistas do mundo, há que reconhecer a ofensiva das autocracias contra as democracias e a nossa obrigação, assim como interesse fundamental, de alinharmos internacionalmente com todos os Estados democráticos que partilham a nossa matriz civilizacional.

Agora que Portugal se prepara para novas eleições e que teremos um novo governo temos uma oportunidade para devolver a coluna vertebral à política externa portuguesa, sendo particularmente importante respeitar o nosso compromisso com as nossas alianças tradicionais, recuperar o eixo atlântico – assumindo-o sempre como um vetor fulcral na nossa inserção externa –, aprofundar a nossa ligação ao centro do poder na Europa – hoje cada vez mais alicerçado na Alemanha – e reconhecer a nossa relação privilegiada com os Estados democráticos.

É fundamental que o façamos. Até porque, como lembrou John F. Kennedy, domestic policy can only defeat us; foreign policy can kill us”

 

Tiago Moreira de Sá

Deputado na Assembleia da República

Coordenador do PSD na Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas