I. A reflexão acerca das universidades e em geral sobre o papel do ensino superior tem vindo a ser enriquecida pela publicação de um conjunto diversificado de bons livros e de importantes relatórios de instituições internacionais.

Assim, e para apenas referir algumas publicações recentes, o estudo de uma equipa coordenada por Júlio Pedrosa, ao lado dos livros de João Filipe Queiró, de António M. Feijó e de Miguel Tamen, e daquele que foi coordenado por Maria do Céu Patrão Neves e David Justino sobre ética da educação, exprimem olhares plurais acerca da missão e das realizações das universidades portuguesas que merecem análise aprofundada.

De modo distinto, relatórios recentes da OCDE sobre o ensino superior e a educação de adultos são outro exemplo de estudos relevantes, preocupados com a emissão de recomendações para acções concretas do Governo e das instituições. Quando recordamos a situação portuguesa em 1974 e a comparamos com a actualidade, certamente podemos referir com orgulho alguns dos resultados alcançados pelas políticas de educação da democracia. Contudo, existem muitos problemas que continuam por resolver.

II. Em primeiro lugar, as ambiciosas metas propostas pela Estratégia 2020 da União Europeia não vão ser cumpridas. Assim, um dos objectivos dos países da União Europeia através da definição desta estratégia passa por aumentar a percentagem da população que completa o ensino superior para, pelo menos, 40% em 2020. Este objectivo foi definido com outras metas igualmente quantificadas, designadamente ter 75% da população de idade compreendida entre 20 e 64 anos empregada e investir 3% do PIB em I&D.

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Também permanecem dúvidas acerca da equidade no regime de acesso e sobre o cumprimento do princípio constitucional da liberdade de escolha de escola. Tive ocasião de apresentar algumas reflexões sobre estes temas em diversas ocasiões, nomeadamente no Conselho Nacional de Educação, e as conclusões pessoais apontam para medidas muito concretas que assegurem a liberdade de escolha, permitam aumentar o acesso ao ensino superior de estudantes provindos das escolas profissionais e facilitem a frequência do ensino superior a adultos que não acederam ao ensino superior logo após a conclusão do secundário, nomeadamente através da generalização da formação digital e a distância.

Apenas com o recurso aos meios de formação a distância será possível trazer novos públicos para o ensino superior e isso também implica uma nova estratégia para o ensino de adultos, matéria para que as instituições de ensino superior deveriam ser mobilizadas. Parece hoje claro, à distância de dez anos de implementação do processo de Bolonha, que muitas das esperanças que nele depositámos não foram concretizadas.

III. Uma primeira consequência negativa da introdução do processo de Bolonha consiste na desvalorização da ligação entre as universidades e as ordens profissionais.

A licenciatura era a licença para o exercício de uma profissão. Contudo, isto descreve uma realidade que já não existe. Hoje, a licenciatura é a licença para estudar sozinho, para recordar uma expressão de Adriano Moreira.

As universidades perderam o monopólio da formação profissional. Temos vindo a assistir à multiplicação de ordens profissionais. Estas passaram a entender como sua responsabilidade, não apenas admitir os profissionais, nomeadamente definindo o tipo de formação universitária exigível, como assegurar formação especializada aos candidatos. As universidades perderam assim uma competência que vinham exercendo desde a sua fundação medieval. Pelo menos 17 ordens profissionais, ao lado de outras entidades, algumas com responsabilidades públicas, como o Centro de Estudos Judiciários, definem as regras de acesso às profissões. A ligação entre as universidades e a sociedade ficou assim mais distante.

Também e parcialmente em consequência destas modificações, bem como das alterações legislativas da organização e funcionamento das universidades e institutos politécnicos públicos, tem-se vindo a assistir a uma transformação da natureza destas instituições.

Se a definição das propinas no ensino público pertence ao reduto da autonomia das instituições, podem encontrar-se diferenças assinaláveis entre elas, especialmente quanto ao preço das propinas devidas pela frequência de cursos de mestrado e de doutoramento. Idêntica situação verifica-se em relação ao preço das propinas a pagar pelos chamados estudantes internacionais – isto é, aqueles que provêm de fora da União Europeia.

Esta matéria, que se justificava estar padronizada por se tratar de universidades públicas, é hoje encarada como uma questão de competitividade entre as instituições. A descaracterização das universidades públicas, enquanto entidades de direito público, constitui, portanto, um elemento que merece atenção e análise.

Não é apenas o facto de os preços das universidades serem hoje distintos. Efectivamente, as universidades públicas fixam livremente as propinas devidas pela frequência e conclusão de cursos de doutoramento e de mestrado não directamente associados a uma profissão. Fixam também livremente os preços das propinas devidas pelos estudantes internacionais. Merecem referência as escolas de negócios de universidades públicas, algumas com excelente reputação nacional e internacional e que constituem relevantes sinais da capacidade científica e organizativa, mas que têm vindo a colocar novos problemas sobre o lugar destas iniciativas no quadro da legislação de direito público e das contas públicas. Sem dúvida que, para além destas temáticas acerca do estatuto destas escolas de negócios em universidades públicas e da aplicação do estatuto de carreira docente aos seus professores, há lugar para as questões clássicas sobre a independência das universidades face aos poderes económicos e políticos.

Para referir exemplos concretos, em outros países, ao assumirem natureza fundacional, as universidades submetem-se a um regime de direito privado e pagam os impostos adequados, do IMI ou equivalente ao IVA. Tive ocasião de acompanhar o processo de reforma da educação em diversos países da Europa de leste, após 1989, e a possibilidade de falência de universidades públicas foi aí discutida, face a tal enquadramento.

Este é um tema central da accountability, no sentido económico, mas, também, um tema fulcral da autonomia da universidade perante os diversos poderes. Todo o ensino é de interesse público e esta noção aplica-se também às instituições privadas, quer as entidades instituidoras tenham ou não como fim o lucro. Em contrapartida, o sistema de controlos administrativos em relação às universidades privadas mantém-se: um sistema que controla a fixação de vagas pelas instituições e que pretende inclusivamente controlar as escolhas dos estudantes.

IV. Entro, assim, numa terceira consideração sobre o processo de Bolonha. Um sistema de avaliação das instituições de ensino superior é uma exigência constitucional. Como acontece pelo mundo, esta determinação pode ser cumprida de formas muito distintas. Contudo, assinala-se uma tendência para a padronização da organização curricular dos cursos do ensino superior, uma matéria em que a regra deveria ser a da inovação e da pluralidade.

Num outro contexto, Ortega y Gasset teve o dito célebre de que as universidades têm que estar à frente do seu tempo. As universidades terão que ser capazes de formar estudantes para os empregos do presente e do futuro, no contexto do que hoje pacificamente se refere como quarta revolução industrial. A importância de introduzir no ensino superior as chamadas soft skills e de permitir aos estudantes construírem planos de estudos de forma mais flexível, adaptados aos seus interesses e projectos de vida já era uma preocupação há vinte anos.

Hoje, para a OCDE, a inovação na educação pode inclusivamente ser medida: já não é apenas uma aspiração, é uma exigência – diria, uma exigência para a sobrevivência do ensino superior perante a concorrência de grande qualidade de universidades de outras partes do mundo. Na verdade, o modelo de acreditação terá que ser mais flexível para responder a estas exigências e não se fechar no mundo das referências científicas e pedagógicas dos próprios avaliadores – em que os concorrentes decidem, num modelo típico da economia corporativa, que competidores podem ser admitidos no mercado.

No contexto em que se discute a universidade do futuro, parece clara a necessidade de viabilizar uma das ideias força do chamado processo de Bolonha. Na verdade, a flexibilidade na organização dos currículos constitui uma peça indispensável numa política de confiança nas instituições de ensino superior.

É imperativo evitar o reaparecimento de um velho vício bem português das organizações públicas – o paternalismo. A autonomia de cada instituição é o bem mais relevante do ensino e isso implica, não apenas o direito de se auto-regular, como de definir o seu modelo científico, pedagógico e didáctico. Não é apenas a autonomia das universidades que está em jogo: é também a liberdade de escolha dos estudantes.

A universidade deve ser uma organização inovadora. Por isso, o ambiente educativo – hoje frequentemente designado como ecossistema de ensino – terá que ser permanentemente reinventado. Infelizmente, o processo de Bolonha não foi seguido por uma agenda inovadora clara no plano pedagógico e no plano didáctico.

Os cursos foram reduzidos na sua duração, mas não se cuidou de definir uma agenda clara para a inovação, nomeadamente aproveitando os novos instrumentos permitidos pela era do digital. Algumas experiências – entre as quais se incluem as excelentes ferramentas da FCCN, nomeadamente de generalizar a criação de MOOC pelas universidades, centros de investigação e entidades da administração pública ou a que iniciei no Centro de Estudos Judiciários para a formação jurídica – permanecem como exemplos isolados.

Na verdade, a Universidade deve ser outra coisa: colegial no processo de discussão científica, mas aberta à inovação, capaz de reinventar-se pela acção dos seus professores e investigadores. Se se refere que o estudante deve estar no centro de atenção da universidade, são o prestígio e a qualidade do ensino e da investigação dos professores e dos investigadores que determinam a escolha concreta por parte de cada estudante.

A autonomia da universidade é o instrumento necessário para garantir a liberdade de ensinar e de investigar e essas liberdades implicam actualização permanente. No mundo tecnológico em que vivemos e no turbilhão da quarta revolução industrial, isso implica inovação.

A Associação Europeia das Universidades publicou interessantes estudos dirigidos a responder a questões em concreto: como melhorar a capacidade de inovação e criatividade? Como melhorar o capital humano?

Como estudaram Claudia Goldin e Lawrence Catz para os Estados Unidos da América, o investimento na educação gera capital humano e este é responsável por alterações decisivas na sociedade e na economia: mas não existe uma correlação directa entre as transformações tecnológicas aceleradas e o aumento das desigualdades. Uma agenda inovadora não é uma competição entre tecnologia e educação, mas incorporar continuamente o tema da inovação no plano do ensino e, ao mesmo tempo, assegurar que esse investimento produz sociedades mais igualitárias e coesas.

O diagnóstico da Associação das Universidades Europeias não é, portanto, exclusivamente nacional: ausência de perspectivas de longo prazo; burocracia; controlo excessivo; falta de comunicação interna. Os valores propostos – criatividade, visão de largo prazo, alianças estratégicas e sustentabilidade – não implicam apenas questões de liderança das universidades, mas exigem legislação e regulamentação adequada.

V. Gostaria de registar neste artigo uma última tendência negativa da vida universitária dos nossos dias. Ao lado do fenómeno da globalização económica, social e cultural, é muito preocupante o fenómeno paralelo da globalização do pensamento único.

As correntes dominantes deste pensamento globalizado impõem-se no mainstream cultural, não apenas através de meios de comunicação tradicionais e das novas redes sociais, mas, também, de instrumentos muito específicos da investigação científica. A ameaça para a autonomia das universidades, portanto, também vem hoje de dentro. O chamado politicamente correcto constitui uma enorme ameaça para as liberdades fundamentais de que a universidade é a primeira detentora e defensora – as liberdades de investigar e de ensinar, de opinião e de imprensa. Recentemente, o Ministro das Universidades da Inglaterra denunciou num discurso a censura nas universidades.

A ditadura do «publicas ou morres» desviou-se hoje para uma nova tecnocracia académica, não apenas dominada pelos rankings de universidades, mas por um novo academismo multinacional. Nos salões académicos cada vez se conversa menos acerca da ciência e da cultura, isto é, de livros e de investigações, para tudo andar à roda de ISIS, SCOPUS, factores de impacto, número de citações… Sem dúvida que existem críticos como Martha Nussbaum, pessoas que falam do fim do dogma académico (Nisbet) e paródias muito sérias – as imposturas intelectuais.

Ao nível interno da vida académica já se conhecem muitas consequências negativas: menos professores qualificados motivados para exercer cargos académicos, tarefas menos valorizadas numa cultura científica marcada pela quantidade de publicações «indexadas»: noutros tempos, o índex reportava livros proibidos; hoje assinala rankings de autores…

A universidade fecha-se assim no seu castelo ou no seu labirinto. Um bom exemplo deste enclausuramento consistiu no facto de nem as universidades europeias nem, ao nível nacional, as portuguesas, terem sido capazes de prever a grave crise económica iniciada em 2008. Os avaliadores internacionais da FCT continuam globalmente muito pouco receptivos a incluir nas suas avaliações o enraizamento das instituições na sociedade portuguesa, a sua capacidade de atrair estudantes de outros países de língua portuguesa, o seu contributo para o avanço da cultura portuguesa.

Os efeitos negativos da globalização do pensamento único são riscos evidentes para a ciência e cultura em língua portuguesa – algo que é difícil avaliar mas que se exprime num mal-estar evidente nos centros de investigação.

Os populismos nascem e nutrem-se nestes ambientes de globalização do pensamento único ou politicamente correcto. Agora, como no passado, a situação das universidades é um bom barómetro das tendências sociais. Se, como lembrava Bobbio, a crise da democracia é em grande parte o resultado das promessas incumpridas da política, continua a caber às universidades uma tarefa essencial de representarem bússolas do pensamento crítico, da criatividade, do pluralismo e da liberdade de pensar.

Professor Catedrático
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.