O tema da eutanásia interpela-nos profundamente, na nossa condição humana comum e no sistema de valores de cada um. Pelas funções que ocupo, interpela-me de uma forma particular, dada a sua sensibilidade e transversalidade. Ele relaciona-se, ao mesmo tempo, com a dignidade humana; a cosmovisão individual; os princípios da liberdade, da autonomia e da propriedade da pessoa; o relacionamento entre a política e a religião; a confiança democrática nas instituições (um ponto que aqui não trataremos por razão do anterior); e a solidariedade intergeracional.

Em primeiro lugar, o conceito de dignidade humana. Na minha experiência de diálogo inter-religioso, costumo frequentemente dizer que nos unimos – cristãos, muçulmanos, judeus, hindus, budistas, baha’is, agnósticos ou ateus – pelo que mais nos separa: a religião. Essa é uma evidência, e procurar união pela e apesar da religião não faz sentido, pelo que nos resta construir a liberdade e o respeito na e pela diferença.

O que nos une, pelo contrário, é essa inexorável e indelével condição de nascer, viver e morrer como seres humanos. Somos dignos porque somos humanos. E humanamente diferentes. Essa condição tem ainda uma dignidade que lhe é própria e superior, fundada no juízo, essa maravilhosa capacidade que só os humanos têm de mediar a palavra e a ação pelo pensamento baseado em princípios e valores – mesmo contra a vontade, o interesse e as circunstâncias próprias. E contra o sofrimento. Todos nascemos, vivemos e morreremos nessa condição. E recorremos a esse juízo para reconhecer que aqueles que, por doença ou estado de inconsciência, não o têm, não perdem por isso a sua condição de dignidade de seres humanos.

O que nos separa, por vezes de forma inultrapassável, é a conceção que temos da origem da vida, da natureza e do destino humanos e dos valores pelos quais nos regemos – a nossa cosmovisão. A dignidade de cada indivíduo só é respeitada no respeito pela sua cosmovisão e atacar esta última é um ataque à primeira. Em relação à eutanásia, é óbvio que a conceção da origem da vida e da natureza humana enformará a posição sobre se é lícito ou não alguém terminar com a vida de outro, mesmo que a seu pedido. É nossa obrigação admiti-lo sem estigma e sem acusação.

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É óbvio que um cristão, que crê que todos os seres humanos contêm em si a beleza de um ato criativo de Deus, único e irrepetível, à Sua imagem, chegarão à conclusão da santidade da vida e do princípio da sua inviolabilidade. (E não, isso não implica um absoluto… Ou não haveria mártires, dispostos a abdicar da vida própria por ideais. Nem pais ou mães que matassem, sem culpa nem pena, para proteger os filhos. Falemos, aqui, só de eutanásia.)

Mas é também óbvio que quem não possui uma mundividência que resida no transcendente acabe a fundar-se numa outra crença em si própria – a de que a vida, por mais valor que tenha, é só um finalizar do tempo, sem outro significado existencial, sem origem que não o acaso e sem destino que não o vazio. E a conclusão é a de que nada obsta a que termine a pedido do próprio.

Há ainda os casos, talvez excecionais, de quem crê no transcendente, mas conclua que pedir a morte não atenta à santidade da vida; e quem alcance a supremacia da dignidade da vida sem necessitar de recurso à crença. No entanto, como civilização, devíamos, pelos menos, questionar-nos sobre a profundidade de um apelo a uma só voz, de tantas tradições milenares, pelo respeito pela vida humana. (E, para prevenir falsos argumentos, não é sobre outras coisas – como a escravatura, a inferioridade dos não crentes ou a condição da mulher, de que tantos acusam os textos antigos. É sobre a Vida.)

No passado dia 12 de fevereiro, pela segunda vez num espaço de aproximadamente um ano e meio, quase uma dezena entre as comunidades religiosas radicadas mais significativas em Portugal tomaram posição contra a despenalização da Eutanásia. Em maio de 2018, oito confissões assinaram, publicamente e pela primeira vez, uma declaração comum, com o título “Cuidar até ao Fim com Compaixão”, afirmando valores como o da vida, o da dignidade humana, o do cuidado com os doentes terminais e o da necessidade de aprofundar o seu alcance. Agora, através de um comunicado e de uma conferência de imprensa, o Grupo de Trabalho Inter-religioso Religiões-Saúde reafirmou esses princípios, centrando a tónica na falta de “sensatez e de legitimidade” da despenalização da eutanásia pelo Parlamento, face à exiguidade de recursos de cuidados paliativos. Fundados no que consideram Revelação – textos bíblicos, corânicos, toraicos, védicos ou outros – os representantes das confissões signatárias dos dois documentos atrás referidos transportam a voz do tempo, em aviso de que cada vida tem um valor imanente, intrínseco, de origem divina, de que ninguém deve dispor. E, para elas, é esse valor que está a ser questionado e alterado, abrupta e levianamente. Ou, como dizem, sem sensatez e sem legitimidade.

O terceiro ponto é o que mais me interpela e o que maior fragilidade denota para os argumentos daqueles que, em consciência, sem certezas e com humildade, defendem que o Estado não deve permitir a morte, mesmo que a pedido da pessoa que deseja morrer. Esta questão exige de cada ser humano uma posição, muito mais do que uma opinião. As opiniões podem ser infundadas, voláteis, inconsequentes; mas a morte, dos nossos e a nossa, é uma realidade com que lidámos e lidaremos, pois somos com ela confrontados e exige de nós posição. Na formulação de uma posição, não contam obviamente só as crenças, mesmo que alicerçadas em sólidos princípios racionais; contam muito, também, as conclusões a que chegámos com apoio do que lemos e ouvimos, as reflexões que realizámos e as conclusões que construímos como nossas.

Entre estas, os princípios da liberdade, da autonomia e da propriedade da pessoa são os mais difíceis de harmonizar com a penalização da eutanásia, por parecerem incompatíveis com o direito de, numa situação limite, pedir a própria morte. É que a liberdade é também uma componente imanente, intrínseca e condicionante da dignidade humana. Sem a primeira não existe plenamente a segunda. E, com ela, o princípio da autonomia, da disposição de ser e cumprir a própria lei em relação a si mesmo. E, com as anteriores, o sentido de propriedade sobre o próprio corpo, do direito à não existência de qualquer reclamação de posse e de uso que não do próprio. Como explicou John Locke: “Todo o homem detém a propriedade sobre a sua pessoa. Sobre isso, ninguém tem direito, que não o próprio”.

É verdade que, para um crente cristão, como podemos extrair dos Evangelhos, a liberdade só se alcança paradoxalmente, na entrega da vontade Àquele que liberta – do pecado, do mal, da carne, da morte… Aí, após essa entrega, a que chamamos conversão, a autonomia transforma-se em dependência, e a propriedade é devolvida à Sua verdadeira origem. Daí que ninguém seja autónomo, pois já não obedece à sua própria lei; e ninguém é proprietário de si, da sua vontade, do seu corpo, pois a Deus pertence. Mas Esse é o mesmo que só deseja essa mesma entrega se for voluntária. Este plano de argumento não colhe como base para a lei de uma sociedade livre, plural, secular, como é, felizmente, a nossa, embora seja muitas vezes invocado por aqueles que se opõe à eutanásia.

Assim, para a questão axiológica que opõe entre si direitos superiores — como são a vida e a liberdade — só na axiologia se pode encontrar resposta. É que a liberdade não é, tal como a vida, um valor absoluto. Os que defendem o direito legal a pedir a morte tendem a colocar a liberdade como valor supremo, logo, superior à vida; os que defendem que tal direito não deve ser permitido, tendem a valorizar a vida como supremo, logo, superior à liberdade. Nenhum é absoluto e ambos, vida e liberdade, não deveriam ser vistos como um excluindo o outro, pois ambos pertencem à esfera da dignidade humana. A tensão permanente de avaliar se a vida vale a pena sem liberdade e se a liberdade merece a perda da vida tem sido o motor das maiores decisões da História. Como, então, justificar a falta de liberdade para pedir a própria morte?

É que, de facto, desejar não continuar a viver é uma situação limite, para lá da razão, da natureza, da vontade inata de viver e de sobreviver. Ela surge como último recurso perante a ausência de sentido, perante o sofrimento, a dor, a solidão, o abandono, a desesperança. E a pergunta que se impõe é se alguém, numa só ou num conjunto destas circunstâncias, se encontra verdadeiramente livre para decidir sobre a solução última, a única que não tem apelo nem revogação – a morte. Foi para esta questão que os Capelães das diferentes comunidades religiosas – homens e mulheres experientes, que lidam com o sofrimento e a morte nos hospitais todos os dias – mais se pronunciaram no documento que citámos.

Dizem eles que ninguém, mesmo que em sofrimento, que não esteja profundamente só, que não se sinta abandonado, que não sofra de falta de esperança, deseja verdadeiramente morrer. Não tenho a mesma certeza que eles, mas uma convicção, de facto, tenho: é uma irresponsabilidade moral oferecer uma saída irremediável sem ter feito todos os esforços para que tal dor, sofrimento, solidão e desesperança não tenham lugar. E, sim, nunca estarão feitos todos os esforços, pois uma vida só, vale todos os esforços. Aqui reside a imoralidade de permitir que alguém peça a sua morte, mesmo que com base na sua liberdade, autonomia e propriedade, num quadro de ausência de cuidados de fim de vida mínimos que garantam um acompanhamento digno, para já não exigir compassivo.

A legalização da liberdade de alguém pedir a sua morte é a admissão de toda uma sociedade de que falhou em dar-lhe sentido para continuar a viver.

Um outro ponto que me interpela de forma especial relaciona-se com os limites dos discursos da religião e da política. A Igreja Adventista do Sétimo Dia pronunciou-se sobre a “Assistência aos Moribundos” em Declaração da sua mais alta autoridade eclesiástica e administrativa, a Sessão da Conferência Geral, em 1992. Aí estão plasmados pontos de partida que enquadram a sua proposta de reflexão para os seus membros e para a sociedade em geral: a dignidade do ser humano como criado por Deus e à imagem de Deus; o sofrimento e a morte como integrantes da condição e das circunstâncias humanas; a responsabilidade – de profissionais de saúde, familiares, amigos, crentes… – de mitigar a dor através da prestação de cuidados e do acompanhamento compassivo; o desafio dos avanços científicos, nomeadamente no prolongamento artificial e inconsequente da vida. Estes pontos de partida conduzem, então, a um conjunto de princípios que orientam a sua proposta sobre os limites da assistência àqueles em situação de doença terminal: a rejeição da Eutanásia, a chamada “boa morte”, como “golpe de misericórdia”, “o ato de tirar intencionalmente a vida a uma pessoa que está a morrer”; e a compreensão da interrupção da Distanásia, a prestação de cuidados que “apenas aumentem o sofrimento do doente, ou prolonguem desnecessariamente o processo de morrer”, logo, sem esperança de recuperação, e sempre de acordo com a vontade do doente e da sua família e das regras em vigor.

Mas a comunidade que represento também defende e observa os princípios da liberdade religiosa como fundamentais, em muito pela sua experiência passada e pela sua idiossincrasia doutrinária. Uma parte fulcral desse princípio é a separação bem nítida entre as esferas da Religião e da Política, do Estado e da(s) Igreja(s). Tomar posição num assunto público não é, pois, uma decisão de ânimo leve e é sempre apresentada de forma quase tímida. É por essa razão, por exemplo, que tal Igreja manifestou a sua posição sobre o valor da vida e de oposição à Eutanásia, justificando-a em declaração própria; mas não se pronunciou nem se pronunciará sobre a aprovação ou não da sua despenalização no Parlamento e não defenderá nem se oporá à realização de um Referendo.

A vida – como os outros direitos fundamentais imanentes à dignidade humana – não deveria ser sujeita a votação, parlamentar ou referendária; mas não é por sê-lo que alterará o que as diferentes cosmovisões pensam e manifestam sobre ela. É outro plano. Se, por um lado — e felizmente — a Religião e as comunidades religiosas já não têm o poder de decidir politicamente, nem o pensamento livre contemporâneo lhes permite a veleidade de serem “donas” das consciências dos seus seguidores, também não devem os decisores políticos esperar o silêncio, a anuência e a complacência dos crentes em matérias do foro da consciência, condicionando-os com a acusação de interferência na Política, que não lhes deveria deter o primado, quanto mais o exclusivo.

É por isso que uma qualquer decisão não afetará a orientação moral de quem acompanha os doentes. Como diz um Capelão meu amigo: “O meu dever é acompanhar sempre. Lutarei até ao fim para que os que sofrem até ao limite nunca desejem a morte ao ponto de a pedir; mas, se tal acontecer, estarei lá nesse momento, sem recriminações e não os deixando sós… a segurar-lhes a mão”.

Por fim, a discussão da eutanásia chega num momento histórico particularmente sensível de desconstrução das características fundamentais de uma sociedade. O aumento da esperança média de vida, doenças crónicas durante largos períodos de tempo, a diminuição do número de filhos por família, a migração dos jovens por questões laborais, a quebra dos relacionamentos de vizinhança, por um lado; e a pressão sobre as instituições públicas e privadas de tratamento e acolhimento dos doentes e dos idosos, que dos fatores anteriores derivam, por outro; são explicação para uma verdadeira “epidemia da solidão” (como lhe chama o Padre José Nuno Ferreira, porta-voz do referido Grupo de Trabalho) que assolará as gerações futuras. E que impacto terá na decisão de pedir a morte?

À primeira vista, parece quase abjeto utilizar o argumento de “rampa deslizante”, no motivo e em número, alertando para um crescimento imprevisível de casos de pedido de morte para justificar a não despenalização da Eutanásia; mas não o é menos oferecer uma alternativa rápida e indolor para quem já não tem força ou motivação para viver, porque já não tem por quem ou para quê viver.

É também essa ausência de responsabilidade recíproca que constrói a noção de dignidade do ser humano. As gerações mais novas precisam de aprender, ao assistir e ao cuidar do sofrimento dos seus ascendentes, que uma vida vale por si, tem dignidade por si, é independente e está acima da perspetiva que a sociedade e que o próprio tem de si. Porque o valor é muito mais que a utilidade, e a dignidade é muito mais do que a condição. A dor e o sofrimento podem ser atrozes e não têm mérito em si mesmo. Mas o amor pelos mais jovens, aqueles que sonhamos que mantenham o que de melhor construímos, impõe-nos uma educação para a dor, para o sofrimento, para a morte, que seja humana, próxima, compassiva. O que melhor construímos, como sociedade e durante muito tempo, foi uma certa ideia de dignidade de cada ser humano.

É isto que se discute na atualidade, nos jornais, nos cafés, nas escolas, com mais ou com menos profundidade.

Na semana passada, a caminho de casa, a minha filha adolescente contou-me que se falou sobre eutanásia na aula de Cidadania. “Gostei muito do debate”, disse. “Mas achei estranho que quase todos os meus colegas concordassem com a eutanásia… Até houve alguém que disse que achava bem, porque a vida não é uma obrigação, é uma vontade”.

Queremos que as futuras gerações cresçam e se formem na ideia de que a vida é uma vontade? A vida, quando inicia, não é uma vontade. Porque haveria de sê-lo ao morrer? E, principalmente, para bem de todos, será bom que pensemos na vida dos outros como uma obrigação nossa – com humanidade, proximidade, compaixão. Talvez assim, com a nossa obrigação perante os outros, os outros passem a ter mais vontade de viver. E vice-versa, quando chegar a nossa vez.