Antes de se estrear, o mais recente episódio de “A Guerra das Estrelas” já fez entrar na caixa mais de 50 milhões de dólares. Era essa a receita da venda antecipada de bilhetes segundo o Financial Times de 12/13 de Dezembro. Este é o sétimo filme da série e o primeiro sob nova gerência. Os primeiros três foram depois re-numerados como quarto, quinto e sexto; o princípio da história foi contado no quarto filme e nos dois seguintes. Agora estão previstos mais três filmes, a começar neste, para continuar a contá-la.

A dimensão económica e financeira desta série de filmes criada por George Lucas é inescapável: quando ele vendeu a criatura à Walt Disney, em 2012, recebeu em troca 4,5 mil milhões de dólares. Há quem diga que não fez um grande negócio. É aparentemente provável que “A Guerra das Estrelas: o Despertar da Força” seja o primeiro filme cuja receita final atinja os 3 mil milhões de dólares, batendo a marca de “Avatar” (tendo em conta a inflação o primeiro lugar de todos os tempos neste palmarés continua a pertencer, segundo fui verificar, a “E tudo o vento levou”). Há muito mais números referentes a este filme e a toda a chamada franchise de “Star Wars” igualmente impressionantes. Quem quiser conhecer esse prodígio em mais pormenor pode recorrer ao referido artigo do emblemático (é a palavra) jornal financeiro inglês, hoje nipo-britânico (o vetusto jornal foi comprado este ano por um grupo japonês).

Porquê? A ficção científica e a fantasia não foram propriamente no cinema uma árvore das patacas. Até 1977 – o ano, curiosamente, em que, sem grandes expetativas, se estreou “A Guerra das Estrelas”. Se nos remontarmos apenas a 1977 – isto é, aos últimos 40 anos, mais coisa menos coisa – o caso muda de figura. Entre as maiores receitas registadas desde então pode dizer-se que, salvo raras exceções, a ficção científica e a fantasia dominam a lista dos 100 primeiros. Esta questão não é puramente venal. Dinheiro, neste caso, são espetadores, são “crentes”. Em “Le Bien et le Mal – Les deux côtés de la Force”, um artigo inserido numa extensa jornada da revista francesa Le Point às “nascentes de Star Wars” (aux sources de Star Wars), o autor ensaia, de certa maneira, uma resposta quando escreve, a propósito do tema do Fausto de Marlowe e de outros autores do tempo (falamos dos séculos XVI e XVII), que é um tema que “conhece um vivo êxito internacional porque toca uma corda sensível ao separar radicalmente o Mal do Bem.” É talvez essa a corda sensível que também é tocada por muitos destes filmes e, em particular, pela saga da Força, em que o lado da luz e o lado das sombras se digladiam com uma clareza, se assim se pode dizer, meridiana. (Mas será realmente assim tão meridiana? Darth Vader, o supremo “mau da fita” já foi um “anjo” e é afinal pai “biológico” do arquétipo do “bom rapaz”, Luke Skywalker: a Força é só uma, entre o Mal e o Bem o que está é o uso que lhe damos, são “os caminhos que tomamos”.)

CTNKjCPVEAEqKOn

A Le Point dedicou um número especial a “Sar Wars”

O artigo de Robert Muchembled, Professor Emérito de História da Universidade de Paris, traça um rápido bosquejo do que tem sido ao longo dos tempos a vida do Bem e do Mal, mas sobretudo do Mal, em especial na literatura e na cinematografia, desde que as há – e até na religião (mesmo nas religiões cristãs houve diferentes “narrativas”). Lembra-nos, entretanto, que para Lucrécio, no século I, na origem do mundo estava “a Força” ou o “élan vital” (que Bergson tanto fez para popularizar no século XIX) – o que mostra que há poucas coisas novas sob o sol. Como também nos lembra, de passagem, que os grandes tempos de “caça às bruxas” não foram os das consabidas Trevas da Idade Média mas os séculos XVI e XVII, em que já despontavam as Luzes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Anjos, demónios e aliens

Há outro aspecto que ele põe interessantemente em relevo: a antiquíssima iconografia (valha-nos Erwin Panofsky e o seu velhinho Meaning in the Visual Arts) da luta dos Anjos contra os Demónios, do Bem contra o Mal, em que “A Guerra das Estrelas” e outros filmes também bebem abundantemente e de que Muchembled nos dá alguns apontamentos (vejam-se, por exemplo, o “Alien” e as imagens de criaturas demoníacas que ilustram o artigo), a começar por um belíssimo São Miguel Arcanjo esmagando um horrendo dragão (é um Arcanjo da minha especial predileção, por óbvias razões). Muchembled vê na base do êxito de “Star Wars”, embora de forma interrogativa, “uma reutilização … dos códigos cristãos melhor preservados [nos Estados Unidos] do que na Europa”.

Embora pareça o contrário, mas sem ser totalmente contraditória, está a interpretação de um outro professor, menos emérito, o americano Mark Rowlands, que escolheu “Star Wars” para ilustrar o capítulo dedicado à questão do Bem e do Mal no seu livro The Philosopher at the end of the Universe (“a filosofia explicada através dos filmes de ficção científica”); para ele, a visão do mundo da saga de George Lucas é tipicamente maniqueia – mas o maniqueísmo nascido na Pérsia no século III da Era Cristã foi, a certa altura, uma influente heresia cristã que chegou a tentar Santo Agostinho; procedia de uma outra religião muito mais antiga da mesma Pérsia, o Zoroastrismo, em que um princípio do Bem e outro do Mal (Ormuz e Arimã) estavam em perpétuo combate neste mundo. (Era assim que falava Zaratustra.) E o capítulo, não desfazendo, acaba por ser em grande parte consagrado a uma incisiva lição sobre Nietzsche e o que o autor entende que Nietzsche significou realmente com o seu super-homem.

Houve no século XX a tendência – ainda subsistente – a reduzir o conflito entre o Bem e o Mal, e toda a moral, a um mais rasteiro confronto entre “dois campos políticos, económicos e militares – ora mundo livre e campo socialista, ora Aliados e Eixo”, numas palavras de 1980 aqui tomadas de empréstimo, para abreviar, a uma crónica do “anarco-sindicalista” (?) Jean-Patrick Manchette. É um outro estudo a fazer sobre o que entendemos por Bem e por Mal; é uma interpretação a que também se presta “A Guerra das Estrelas” – com a sua associação de Mal a Império e Bem à rebelião contra ele, embora me pareça neste caso, como se costuma dizer, “redutora”. O artigo de Mouchembled não esquece esse possível subentendido, mas não se alarga muito sobre ele. Entretanto, 1980 foi o ano em que Ronald Reagan foi eleito Presidente. Tornar-se-ia comum mais tarde chamar Star Wars à sua SDI, a famosa Iniciativa de Defesa Estratégica, e ele próprio não hesitou em chamar à URSS “the Evil Empire“. A realidade imita muitas vezes a ficção.