A torre de escritórios que está a ser construída nas Picoas continua a sua senda de polémica. Esta terça-feira, numa votação que se assemelhou ao processo de impeachment de Dilma Rousseff, a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou a alienação de uma parcela de terreno com 27 metros quadrados ao promotor responsável pela construção da torre. Aos jornalistas, o presidente da autarquia adiantou que esse terreno vai ter um custo “superior a 300 mil euros”.

O preço pode parecer exagerado para uma fatia de terreno tão pequena, mas a ele não será alheio o facto de a discussão sobre esta torre de 17 andares já se arrastar na assembleia municipal desde dezembro do ano passado.

A necessidade de privatizar estes 27 metros quadrados de terreno nasceu quando se descobriu, em dezembro, que o promotor da obra tinha colocado estacas num pedaço da Avenida Fontes Pereira de Melo que é de domínio público. Já se sabia que ia ser necessário privatizar uma faixa de 40 centímetros de passeio daquela artéria, e a câmara levou mesmo uma proposta de permuta à assembleia municipal, mas o construtor adiantou-se, colocou as estacas antes de ser dono do terreno e foi mais longe do que devia.

Nessa altura, a câmara ordenou a paragem dos trabalhos e instaurou um processo de contraordenação ao promotor da obra, que poderá originar uma coima avultada. Por outro lado, o Bloco de Esquerda decidiu enviar todo o processo para o Ministério Público, considerando que a construção privada em terreno municipal constitui um crime. Por fim, a câmara acedeu a um inquérito interno (feito por uma auditoria independente) para apurar se houve responsabilidade dos serviços municipais na forma como os acontecimentos se desenrolaram. Para piorar a situação, as estacas colocadas naquela faixa de terreno deslizaram e obrigaram a assembleia municipal a pedir relatórios técnicos de segurança — que motivaram obras urgentes.

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Todos estes aspetos foram trazidos com estrondo para o debate desta terça-feira, cuja votação foi nominal, por sugestão do Bloco de Esquerda. Assim, um a um, os deputados tiveram de dizer se concordavam ou discordavam com as permutas já previstas inicialmente e com a alienação dos 27 metros quadrados que o promotor ocupou indevidamente. Toda a oposição votou contra, mas a proposta foi aprovada pela maioria de deputados do PS e independentes.

“Um Carnaval” de excecional interesse e complexidade

O debate foi mais duro com os partidos de esquerda, que há muito tempo vêm manifestando muitas dúvidas sobre este assunto. Modesto Navarro, do PCP, classificou o processo como “um Carnaval” e afirmou que já devia ter havido demissões na câmara municipal. A mesma ideia foi deixada no ar por Margarida Saavedra, do PSD, que exigiu “consequências políticas”, sem contudo pedir a demissão de ninguém.

Já Ricardo Robles, do Bloco de Esquerda, que desde o início tem estado na linha da frente da contestação a esta obra, considerou que a autarquia teve falta de lealdade para com a assembleia municipal, a cujos deputados apresentou uma proposta “amputada”. Lembrando que esta torre foi classificada como tendo excecional interesse público para a cidade, Robles declarou que “este urbanismo dos excecionais interesses tem de ser travado” e apelou à assembleia que desse “um sinal importantíssimo”, o de que “o urbanismo é feito em benefício do interesse público” e não dos privados.

Para explicar o processo, que disse ter sido “um acumular de erros do princípio ao fim”, o bloquista recorreu a uma metáfora: um carro era roubado e, mais tarde, o dono do carro fazia uma doação ao assaltante. “O presidente da câmara entregou as chaves ao meliante”, disse Robles, aludindo às permutas sugeridas.

Fernando Medina não gostou de ouvir isto e, pouco depois, reagiu irritado às muitas críticas que choveram da oposição. “O sr. deputado Ricardo Robles está sempre à procura do melhor argumento para votar contra”, disse o presidente da câmara, acusando depois o bloquista de falta de rigor. “Não há nenhuma dação a nenhum privado nem nenhum benefício ao privado”, garantiu Medina. O autarca fez questão de separar as águas entre o que estava a ser discutido (“matéria urbanística”) e as possíveis consequências disciplinares e criminais que resultem dos inquéritos do Ministério Público e da câmara.

A decisão de permutar os terrenos e alienar outros “não afasta a aplicação da multa, a avaliação sobre se houve ilícito criminal nem a avaliação sobre a conduta dos serviços”, disse Medina aos jornalistas já depois da votação. O presidente da câmara comentou ainda que são recorrentes os “pequenos acertos” entre o que é propriedade privada e pública quando são discutidos alguns projetos.