Sete. O número da camisola de Ronaldo. E ainda o de golos de livre direto na seleção. Sete. É o rei, em definitivo. À frente de Figo, outro sete. Que se fica por seis. Na Luz, o 7 Ronaldo fixa o 3-0 à Hungria e faz-se o mais bem sucedido goleador de livres diretos ao serviço de Portugal. É dose. É Ronaldo.

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Há quem diga que o cinema é ação, mas é um equívoco. O movimento é apenas uma parte do cinema. O espetáculo também não é o cinema. E também não é cinema fotografar atores a representar. Fiar-se nos atores é pedir emprestado ao teatro. Para os entendidos, como Alfred Hitchcock, a montagem é o aspeto essencial de um filme. E basta ver a cena do chuveiro em “Psycho”. A faca de Anthony Perkins nunca toca o corpo de Janet Leigh no ecrã. Dá-se a impressão que sim, só que não toca na realidade.

O efeito é da montagem. E também não se mostra nenhuma parte do corpo feminino que possa ser considerada tabu. A ilusão de nudez é também alcançada através da montagem. Há 70 planos com trucagem diferentes em 45 segundos. Tudo “culpa” da montagem. No futebol, as palavras ação, movimento e espetáculo desaguam invariavelmente em golo. Se for de livre direto, é uma montagem. Porque o jogador nunca vê a baliza toda nem sempre o guarda-redes assiste à partida da bola. De repente, alegria de um lado e tristeza do outro. Tudo “culpa” da montagem. Como nos filmes. Inventámos esta linha de pensamento agora mesmo para nos sentirmos mais confortáveis na abordagem da temática dos livres diretos, porque o de Cristiano Ronaldo na Luz a fixar o 3-0 à Hungria é o seu sétimo golo nesse tipo de lance de bola parada e ultrapassa o recordista nacional Luís Figo. Montagem é o que é.

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Figo seis, Ronaldo sete. Mas então e os outros? Quais outros, Eusébio? Sim, por exemplo. Dois, ambos à Turquia, ambos em 1965, um no Jamor, outro em Ancara. Sabe quem tem também dois golos de livre direto na selecção? Petit. Não, não é nenhuma montagem, é mesmo o pitbull Petit. Dois, um nos 7-1 à Rússia em Alvalade-2004, outro nos 2-0 à Croácia em Coimbra-2005. Outros assim, com dois: Rui Rodrigues (Escócia-71, Inglaterra-75), Pauleta (Inglaterra-04, Cabo Verde-06) e Simão (Luxemburgo-05, Sérvia-07). Há alguém entre estes quinteto e os dois líderes? Rui Costa, com três: Estónia-1993, Hungria-1998 e Andorra-1999. Com um golo de livre direto, oito ilustres: Carlos Pereira (Espanha-41), Matateu (França-59), Jacinto (Roménia-68), Nené (Chipre-76), Oliveira (Finlândia-82), Futre (Malta-91), Deco (Brasil-03), Miguel Veloso (Bósnia-11), Nani (Luxemburgo-16) e Raphaël Guerreiro (Noruega-16).

Centremo-nos agora nos dois 7, Luís Figo e Cristiano Ronaldo. O percurso do primeiro é extraordinário, porque marca cinco golos em 18 jogos, de Março de 1999 a Setembro de 2000. Entre as vítimas, Liechtenstein (Vaduz), Andorra (Jamor), Roménia (Bucareste), Gales (Chaves) e Estónia (Tallinn). Voltaria a marcar só em 2004 (vs. Luxemburgo, Águeda). Por essa altura, ainda Ronaldo está a zeros. Pudera, ainda se vive a era a.M. Antes de montagem? Não, antes de Martunis. Quem? Martunis, a criança indonésia de 8 anos encontrada por uma equipa de reportagem televisiva britânica Sky One numa praia da região de Banda Aceh, uma das mais devastadas pelo sismo e maremoto registado a 26 Dezembro 2004. Vinte e um dias depois da tragédia, que resulta em mais de 300 mil mortos, Martunis é apanhado a vaguear numa praia deserta com a camisola vermelha da seleção a dizer “Força Portugal”. Obviamente torna-se um símbolo.

Martunis é então convidado pela Federação Portuguesa de Futebol para viajar até Lisboa, conhecer o ídolo Ronaldo e assistir ao Portugal-Eslováquia de qualificação para o Mundial-2006. É o dia da criança, 1 Junho. Na sede da federação, Gilberto Madaíl apresenta-se com Martunis, acompanhado pelo pai e pelo psicólogo. “O prometido é devido e vamos entregar uma ajuda financeira de 40 mil euros para que possam reconstruir a sua vida”, diz o presidente. No dia seguinte, dá-se o encontro entre Martunis e Ronaldo, com tradução de Taharuddin, o tal psicólogo que acompanha Martunis desde o momento em que é encontrado a vaguear numa praia. No ato, Ronaldo oferece-lhe uma nova camisola de Portugal, desta vez com o número 1 e o seu nome nas costas.

Quarenta e oito horas depois, outro grande dia, o do jogo no Estádio da Luz. A seleção de Scolari entra em campo com 11 mais Martunis. Tocados os hinos, a criança indonésia sai do relvado acompanhado pelo presidente da FIFA (Sepp Blatter), ouve umas palavras de apoio do presidente do futebol (Eusébio) e sobe à bancada central ao lado do presidente do Benfica (Rui Costa). É de lá que assiste a duas efemérides: é o último jogo do italiano Pierluigi Collina na 111.ª internacionalização de Figo, definitivamente à frente de Fernando Couto. Calma, falta outra (aqui o falta até tem piada a dobrar).

Aos 42 minutos, livre descaído para o lado esquerdo do ataque da seleção. Ronaldo apalpa a bola, mede a baliza com os olhos, recua uns passos, arranca e toma lá disto (montagem), pobre Contofalski. Dois-zero, arranca aqui a fase d.M. (depois de Martunis). É o primeiro golo de Cristiano de livre direto na seleção, seguem-se mais cinco vs. Islândia (Reykjavik-2010), Luxemburgo (Algarve-2011), Dinamarca (Copenhaga-2011), Bósnia (Luz-2011), Irlanda do Norte (Belfast-2013) e agora Hungria (Luz-2017) até superar Figo como melhor português a marcar livres. Em estilo e também em números.