Se passar pelo Rossio, em Lisboa, e alguém fizer uma observação ao estilo “que chão bonito tem este largo”, não perca tempo e diga qualquer coisa como “foram os grilhetas que o fizeram”. E depois, quando já tiver a atenção da sua companhia, não perca o embalo e explique-se: “Os grilhetas eram, neste caso, os prisioneiros da Cadeia do Limoeiro, perto da Sé, que foram utilizados para algo produtivo, fazer a pavimentação da Praça Forte do Castelo de São Jorge e mais tarde de outros locais, como o Rossio”. Ora quem o diz é Lídia Fernandes, arqueóloga e uma das responsáveis pela exposição “Debaixo dos Nossos Pés” que, muito mais do que reunir fun facts como este, é um verdadeiro compêndio sobre como evoluiu Lisboa, a partir do chão que os habitantes foram pisando (e continuam a pisar).

Inaugura esta terça feira, dia 18, no Torreão Poente da Praça do Comércio e por aí fica até 24 de setembro. E Lídia Fernandes conta como surgiu a exposição. “Corresponde à implementação de um projeto de investigação sobre os pavimentos da cidade, especialmente aqueles que foram encontrados em meio arqueológico”, explica a investigadora, acrescentando que é muito mais do que uma história do chão de Lisboa.

“Através deste vestígio da ação humana, quase que se pode conhecer a história da cidade. Se remontarmos aos pavimentos mais antigos registados arqueologicamente, conseguimos perceber que vários tipos de revestimento do solo foram feitos em resposta a situações concretas.”

Além do que está à vista no Torreão Poente, em breve “sairá também uma monografia, em princípio em inícios de maio”.

Das escavações para o museu

A este ponto de partida segue-se a questão prática: o visitante vai poder ver pedaços de pavimento que foram retirados dos seus locais de origem? Também, mas só em casos particulares. Mais uma vez, Lídia Fernandes esclarece: “Não conseguiríamos nunca fazer exatamente isso de forma geral porque os pavimentos não são objetos, são estrutura arqueológicas, seria muito complicado retirar na íntegra pedaços originais e colocá-los noutro sítio”. Ainda assim, a organização de “Debaixo dos Nossos Pés” conseguiu fazê-lo em alguns casos: “Por exemplo, algumas lareiras do século V a.C., ou alguns outros pavimentos dos séculos IV e V a.C., da Idade do Ferro, pavimentos em terra batida queimada”.

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Ou então, ainda mais complexo: “Conseguimos mesmo remontar uma calçada do século XVII, uma calçada que foi escavada muito recentemente, no Campo das Cebolas, na antiga Ribeira Velha. Foi desmontada quando foi feita a escavação arqueológica e os trabalhos de engenharia. As pedras foram guardadas e remontadas aqui na exposição. Um original feito sobretudo em calcário preto”.

Quando não são estes originais que estão expostos, há outras soluções e outras fontes de informação, sobretudo réplicas e iconografia. Admite a investigadora que aproximar os visitantes do trabalho dos arqueólogos, o que vão “fazendo meticulosamente ao longo de muitas horas de trabalho” é a “mais valia da exposição”. Mas também se revelou importante mostrar o que muitos pintores reproduziram nas suas obras, retratos de pessoas “a viver na rua, que não é só um espaço de passagem, é um espaço de vivência”. E quase todas as soluções de pavimentação têm “uma razão, um motivo ou uma origem bem justificada”.

Pelas pedras da calçada

Mas se há exemplos de revestimento tão antigos que remontam ao século V a.C., também há elementos bem mais recentes. E neste campeonato a vencedora destacada é a calçada à portuguesa. “Não temos propriamente exemplares, estão por toda a cidade”, justifica Lídia Fernandes.

“Temos, sim, iconografia que representa o estudo dos projetos para a pavimentação da cidade. Por exemplo, o Rossio com o ‘mar largo’ [as ondas que percorrem toda a calçada], quando foi realizado, em 1843. E temos uma grande mais valia que é a exposição de moldes originais da calçada à portuguesa e de muitos desenhos que ainda hoje a ornamentam”.

E é na calçada que reside a raridade do caso lisboeta entre as cidades mais antigas da Europa e do mundo — já agora, outro fun fact: se alguém falar em calçada portuguesa, não se acanhe e diga em voz alta que também pode ser classificada como “calçada mosaico”. “É de facto uma invenção lisboeta, criada por um tenente-general para a Praça de Armas do Castelo de São Jorge. Depois do êxito nesse espaço, foi aplicada na restante cidade. Mais tarde a Câmara resolveu legislar no sentido de todos os passeios recorrerem a esse revestimento. Agora Lisboa já não é um caso único porque a calçada foi exportada para Macau ou para o Brasil.”

No caso da calçada à portuguesa, feita à base de calcário, aconteceu o que já tinha acontecido antes com outros pavimentos: “Tudo tem a ver diretamente com a matéria prima que estava disponível”. Lídia Fernandes faz referência à sala que a exposição “Debaixo dos Nossos Pés” dedica à riqueza geológica da cidade e que ditou o chão das ruas.

“A terra, a areia ou a cal foram usadas ao longos dos séculos. Na época islâmica, por exemplo, eram os pavimentos em almagre que eram os mais utilizados, uma mistura de argila, areia e cal. Mais tarde seria também a tijoleira, sobretudo na época medieval mas também antes, na época romana. Basalto e calcário eram também abundantes na zona costeira da cidade e foram intensamente utilizados por essa razão.”

E é neste momento desta história que entram os tais grilhetas. Porque havia a necessidade de “ocupar os homens com algo produtivo”. O iluminado tenente-general que no alto do Castelo teve a ideia de fazer a calçada “queria mostrar trabalho e tinha mão de obra disponível, os soldados do quartel do Castelo”. Mas queria e precisava de mais, por isso chamou os presos para que a calçada fosse espalhada pela cidade. “E ainda hoje Lisboa continua a aplicar calçada em novas ruas, assim deverá continuar, mesmo que a Câmara Municipal esteja consciente de que não é um pavimento indicado para determinadas geografias, sobretudo pisos inclinados, já que o calcário é um material muito homogéneo que não causa atrito e pode ser escorregadio”.

Já agora, se alguém fizer a pergunta chave no meio de tudo isto — “mas afinal, quem era esse tenente-general?” — nada tema. Fun fact: era Eusébio Furtado.

Debaixo dos Nossos Pés, uma exposição do Museu de Lisboa, é inaugurada esta terça feira, dia 18 no torreão Poente da Praça do Comércio e está aberta ao público de 19 de abril a 24 de setembro. De terça a domingo, das 10h às 18h (última entrada às 17h30). A entrada custa 3 euros.