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Wladimir Kaminer: "Todos os que podiam dizer ou fazer algo pela Rússia, fugiram. Um país pode existir sem estas pessoas?"

Escritor e cronista russo, Wladimir Kaminer vive na Alemanha desde a queda do Muro de Berlim. Podemos ler agora alguns dos textos que observam Moscovo (e não só) de forma acutilante. Falámos com ele.

Após a queda do muro de Berlim, Wladimir Kaminer (nascido em Moscovo em 1967) saiu da Rússia e foi viver para Berlim, onde reside desde então. Tinha pouco mais de vinte anos e a mudança — tanta mudança — transformou-o num agitador da movida da capital alemã. Pode-se dizer que era o tipo de pessoa certa no sítio certo. Trabalhou em rádio — tinha alguma formação em som, pouco mais do que isso — e envolveu-se com a movida cultural da cidade. A dado momento começou a publicar livros.

Pequeno-almoço à Beira do Apocalipse (Zigurate) é o mais recente deles. Inscreve-se na tradição do escritor (ou pensador que termina o seu processo nos textos) de fazer diários de determinados momentos da vida, em parte para memória futura própria, mas também para que as gerações futuras leiam e compreendam melhor este presente, uma preocupação do autor para combater o que diz ser a “máquina de propaganda russa”. Apesar de viver há décadas noutro país, acompanha a comunicação feita a partir de Moscovo, interessa-se pela forma como algumas notícias são criadas, de onde partem e até onde os russos acreditam naquilo que leem, ouvem e veem — e como se explica esta crença.

O livro aborda essa questão passando também pela Guerra na Ucrânia, ora como pano de fundo, ora como tema central. Por vezes, torna-se difícil discernir em que plano está a guerra, pela forma como Kaminer lança, com frequência, muitas coisas ao mesmo tempo para a mesa. Fá-lo com humor, por vezes o humor surge por consequência da situação, noutras descreve estados que são difíceis de perceber se são ficção ou realidade.

Essa dificuldade existe — e persiste ao longo das páginas — porque um dos subtemas do livro é a convivência da Europa com a paz durante várias décadas. Tanto tempo sem guerras e a noção de que esse mesmo tempo chegou ao fim deixou-nos “pouco preparados para pensar e saber como viver a guerra”, diz. No fundo, o nosso conforto sobrepôs-se ao estado de alerta, à possibilidade da mudança inesperada e a necessidade de a encararmos de frente: o progresso não deixa passar tanques pelas ruas que interditámos aos carros para só agora circularem bicicletas.

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É normal que exista a impreparação — afinal, não temos de estar a postos para o pior (ou será que temos?). Mas nesse período de paz muita coisa mudou, de forma muito rápida e eficaz, e Kaminer joga muitas vezes com a incapacidade de projetar o fim de um conforto da classe média que dávamos por garantido. Chega a fazer a piadas a partir dessa ideia quando, logo no início, explora a ideia do que acontece quando estamos de férias e o nosso país entra em guerra. O que fazer? Como reagir?

Wladimir Kaminer esteve em Lisboa há poucas semanas e aproveitámos para falar com ele. Ou seja, estivemos à conversa com alguém que acha que “o apocalipse é o nosso quotidiano”. Uma ideia que se deve ter presente quando se lê esta entrevista ou se lê Pequeno-almoço à Beira do Apocalipse, um excelente exercício de reflexão sobre o presente, a guerra, a Rússia, tudo com um humor inesperado — ou talvez inevitável.

A a capa de “Pequeno-almoço à Beira do Apocalipse”, de Wladimir Kaminer, na edição portuguesa da Zigurate

Ao longo do livro fala de muitos russos que saíram do país, já conhecia alguns e tem conhecido mais. Que perceção tem sobre as vidas deles, o que sentem, o que move as decisões que tomam?
Mais de um milhão de pessoas saíram da Rússia recentemente. É um tema importante. E é um tema importante sobretudo para elas, mesmo depois de saírem, se desfazem ou não as malas. Chega a haver assembleias de comunidades russas a proclamar para se desfazer as malas. E depois há outros, que são totalmente contra, que dizem para não desfazer as malas, acreditam num regresso rápido.

Isso quer dizer que se perdeu o controlo da narrativa de que a guerra irá ter um fim? Não há garantias de nada?
Mesmo que a guerra termine na Ucrânia, irá continuar dentro do próprio país, com as pessoas que não estão de acordo com o regime. E é mais fácil lutar contra essas pessoas porque não estão armadas. Quer que conte uma história sobre pessoas que não desfizeram as malas?

Claro.
No verão passado, eu estava em casa e um iraniano começa a tocar às campainhas de todas as portas do meu prédio. Vou ter com ele, pergunto-lhe o que é que quer, se está à procura de alguém, e ele diz que vem para a reunião “do meu partido”, nas palavras dele. Respondo que aquilo é um prédio residencial, digo-lhe que ali não há nenhum partido. Ele insiste, mostra a localização no Google Maps, e eu percebo que era o parque em frente. Olho e lá está um grupo reunido, a fazer um churrasco, a comer salsichas. Ele lá diz: “aqueles são do meu partido, mas não podem começar sem mim, porque eu sou o presidente”. Quando ele se está a ir embora, eu pergunto: “mas que partido é esse?”. Era o Partido Social Democrata Iraniano. E começo a pensar… bom, isto não faz qualquer sentido, há quantas décadas… há quantas décadas estas pessoas estão aqui, na Alemanha, e continuam à espera para voltar para o país deles. Entretanto, tiveram netos, os netos já não falam a língua deles, e vão ali àquelas reuniões por gentileza, para não deixarem os velhotes sozinhos. Contudo, esses velhotes continuam fixados no regresso.

Continuam a pensar que dentro de uns meses, inevitavelmente, regressam?
Exato. Quando cheguei à Alemanha, nos anos 90 do século passado, conheci um grupo de chilenos que tinham fugido do regime de Pinochet. Eles tinham um teatro e faziam peças de teatro contra o regime chileno. Os russos que chegam agora estão a fazer a mesma coisa, não interpretam a peça, mas fazem leitura de textos dramáticos que escreveram e que têm nomes como A Morte de Putin. Vivem neste mundo, estão à espera de voltar. Mas o chilenos também não voltaram depois da morte de Pinochet. Continuaram em Berlim.

"Os russos têm sido educados para acreditarem que formam uma nação de vencedores. Venceram o fascismo e vão poder vencer de novo uma guerra. As pessoas colam na parte detrás do carro coisas como 'podemos repetir a façanha'. Pensam que a vitória pertence ao povo, e que o povo russo é todo um povo de vencedores."

Imagina esse destino para estes russos? Daqui a vinte, trinta anos, continuarão a viver noutro país?
Há aqueles que acreditam que as coisas na Rússia andam sempre às voltas e que, independentemente daquilo que aconteça, vamos acabar sempre no pântano da ditadura. Outros, mal alguma coisa muda, regressam logo. Atualmente, não acredito que fiquem… porque todos os criadores de cultura, cientistas, investigadores, etc., vieram-se embora. Todos os que podiam dizer ou fazer algo pela Rússia, fugiram. Só ficaram os cantores pop. Será que um país consegue existir sem estas pessoas? Até as personalidades da televisão fugiram. Todas. Ficaram só três propagandistas que fazem os canais todos. São sempre os mesmos três.

Vê televisão russa?
Na Alemanha é proibido…

Mas no livro refere que é possível…
É proibido, mas as pessoas continuam a ver. A minha mãe ainda vê. Há formas de ver. Por exemplo, os filmes, mostram os filmes, mas a parte de propaganda é cortada, não aparece na televisão. Mas pode-se ver na internet. Mas raramente vejo, quando vejo é porque algum tema me interessa, porque existe uma maneira muito própria de descrever a realidade.

E que feedback tem de quem vê e acredita na propaganda?
Muitas pessoas não levam a sério, riem-se. Por exemplo, a minha família que vive no Cáucaso telefona de vez em quando e perguntam a que sabem os escaravelhos? Isto porque é dito na televisão russa de que na Alemanha as pessoas estão a morrer de fome, que não há nada para comer, e que andam a comer escaravelhos. E eu tenho de perguntar se eles acreditam mesmo naquilo… eles dizem que não, que é apenas divertido pensar nas coisas assim. Claro que fui ver de onde vinha essa história, porque é que estava a ser contada na Rússia, porque há sempre uma razão para essas notícias existirem.

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Manifestação anti-Putin em Berlim: "Está a acontecer tudo ao mesmo tempo, aqui há uma prova de vinho branco, ali ao lado acontece uma manifestação de guerra, acolá existem refugiados"

Anadolu via Getty Images

E qual era?
Tinha havido uma indicação da UE sobre uma farinha feita a partir desses insetos e que se vendia a 18 euros o quilo. A parir daí contaram essa história…

E tem mais histórias dessas?
Tantas, desde contarem que as crianças na Europa são obrigadas a mudar de sexo de tempos a tempos. E nisso algumas pessoas que conheço acreditam… ou até que na Europa as pessoas podem ter sexo com animais, que podem ir a um jardim zoológico e escolher o animal com o qual querem ter relações. E que na Dinamarca os animais favoritos são as tartarugas, e que até fazem fila… Até o Putin de vez em quando fala nessas coisas porque, como homem velho e branco, o sexo é um tema que lhe interessa.

Há sempre uma pequena notícia por detrás dessas, chamemos-lhes assim, “grandes histórias”?
É interessante ver como surgem, há sempre alguma coisa que aconteceu e depois fazem aquele escândalo. Por exemplo, na Dinamarca havia um partido que defendia o sexo com animais, mas era um partido com uma pessoa só. Pegaram nisso e transformaram tudo numa grande história.

Como se vê o fim da guerra?
Os russos têm sido educados para acreditarem que formam uma nação de vencedores. Venceram o fascismo e vão poder vencer de novo uma guerra. As pessoas colam na parte detrás do carro coisas como “podemos repetir a façanha”. E todos eles pensam que sim, mas esquecem-se que não foram eles que venceram, foram os pais, os avós deles. Pensam que a vitória pertence ao povo, e que o povo russo é todo um povo de vencedores. Que isso é uma qualidade do povo. Putin é louco. Já chegou a dizer que o pai dele foi um herói da Segunda Guerra Mundial. E isso é impossível. Mas muitas pessoas olham para essas coisas e acreditam, não prestam atenção. Afinal, um herói é um herói.

Porque escreveu Pequeno-almoço à Beira do Apocalipse como se fosse um diário?
Grande parte dos meus livros são diários, diários de cada época. Escrevo-os assim porque quero lembrar-me do que vivi e quero que as gerações futuras possam ler as coisas com ideia de como estão a acontecer agora. Na Rússia, as pessoas acreditam no que lhes é dito, acreditam na história das tartarugas. A minha mãe vive em Berlim e viu aquilo na TV russa e acreditou. Ela gosta de tartarugas, ficou chocada com a história.

"Quando uma raposa entra num galinheiro, as galinhas alisam as penas. Elas sabem que é o fim delas, mas ao invés de ficarem com medo, tratam da sua beleza… é o cérebro a dizer para fazer outra coisa, para não ceder ao pânico. São coisas irrelevantes que não combatem a situação."

Estamos à beira do apocalipse?
O apocalipse é o nosso quotidiano, acredito que o apocalipse é o estado normal do desenvolvimento da civilização humana. E isso vê-se no próprio título, o pequeno-almoço e o apocalipse, está a acontecer tudo ao mesmo tempo, aqui há uma prova de vinho branco, ali ao lado acontece uma manifestação de guerra, acolá existem refugiados. O livro começa e acaba no Carnaval. Acontece tudo ao mesmo tempo.

E como lidamos com este suposto apocalipse?
Quando uma raposa entra num galinheiro, as galinhas alisam as penas. Elas sabem que é o fim delas, mas ao invés de ficarem com medo, tratam da sua beleza… é o cérebro a dizer para fazer outra coisa, para não ceder ao pânico. São coisas irrelevantes que não combatem a situação. Ajudam apenas a passar o tempo, a gerir os nervos.

 
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