“Peregrinação”

João Botelho continua na sua senda de levar ao cinema obras maiores da literatura portuguesa. Depois de “A Corte do Norte”, de Agustina, de “Livro do Desassossego”, de Pessoa, e de “Os Maias”, de Eça, ei-lo agora a braços com “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, um livro que, para lhe ser feita justiça no cinema ou na televisão, exigiria meios de superprodução de Hollywood ou uma série em vários episódios. Mas mesmo a contar os euros, com recursos técnicos e humanos limitados, a improvisar e a fazer das fraquezas forças, Botelho conseguiu aquilo que Stanley Kubrick, fora de portas, e Paulo Rocha, cá dentro, não chegaram a concretizar, filmando a adaptação possível — parcial, episódica, sintética, inevitavelmente pouco espectacular — das aventuras, dos trabalhos e dos sofrimentos de Mendes Pinto pelas quatro partidas do mundo durante os Descobrimentos. Se o recurso a canções do disco de Fausto Por Este Rio Acima, inspirado pela Peregrinação, para ajudar a contar a história, faz sentido, a escolha do insosso Cláudio da Silva para interpretar Fernão Mendes Pinto (e acumular com António Faria) não foi feliz, pois o papel pedia um actor muito mais conhecido e que proporcionasse uma identificação mais imediata com o público.

“Nos Interstícios da Realidade”

João Monteiro, um dos directores do MOTELX, assina este documentário sobre António de Macedo, falecido há um mês, onde faz justiça a um dos realizadores mais singulares, mais individualistas e mais destratados do cinema português. Macedo teve a ousadia de contrariar a norma do nosso tacanho e dogmático meio cinematográfico, atrevendo-se a fazer cinema de género. Pior: cinema fantástico, logo, “desligado das realidades”, como certa vez lhe reprovaram. Não é a qualidade (muito irregular) dos seus filmes que está aqui em causa, mas sim o facto do autor de “Domingo à Tarde” (este um dos melhores títulos do Cinema Novo nacional), “Sete Balas para Selma”, “As Horas de Maria”, “A Maldição de Marialva” ou “Chá Forte com Limão” ter sido de tal forma hostilizado, execrado e ostracizado pelos seus pares, pelos media e pelas estruturas oficiais de apoio ao cinema, que teve que deixar de filmar nos anos 90. Sintomaticamente, António de Macedo, arquitecto de formação, tornou-se no único cineasta intimidado social e institucionalmente, e vítima de censura política e de gosto antes e depois do 25 de Abril.

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“Stronger — A Força de Viver”

Jeff Bauman, um jovem de Boston, perdeu as pernas no atentado terrorista da maratona desta cidade, em 2013, e o seu testemunho foi decisivo para a identificação e descoberta dos bombistas. Do dia para a noite, Bauman viu-se transformado num herói pelos media, estatuto devidamente aproveitado quer pela sua boçal família, quer por várias instituições de Boston. Este filme de David Gordon Green (“Anjos na Neve”, “Prince Avalanche”), baseado no livro do próprio Bauman e Brett Witter, procura ir mais além dos clichés fácil e confortavelmente sentimentalões e “inspiradores” dos filmes do género “triunfo sobre a adversidade”, e mostrar o reverso da medalha da vida pós-atentado de Jeff Bauman: o trauma de ter ficado paralítico, a mãe alcoólica e brutinha, a insensibilidade de familiares e amigos para com a sua condição física e psicológica, a aversão a ser explorado e exibido como “herói americano”, a sua imaturidade, falta de força de vontade para reagir e falhas de personalidade. Belíssimos papéis de Jake Gyllenhaal no protagonista, de Miranda Richardson na mãe desatinada e de Tatiana Maslayn na namorada dedicada mas com limites para a paciência.

“A Festa”

No novo filme de Sally Potter, rodado a preto e branco, em tempo real e com pouco mais de uma hora de duração, aquilo que era para ser a alegre celebração, por um pequeno grupo de pessoas, da conquista política de uma delas – a nomeação da personagem interpretada por Kristin Scott Thomas para ministra da Saúde do governo-sombra da oposição – transforma-se numa guerra civil entre amigos, num inferno de revelações chocantes, numa microdeflagração nuclear que descobre carecas, põe a nu segredos, desvenda hipocrisias e deixa calcinadas relações íntimas, laços de amizade e afectos antigos e recentes. Uma comédia política ferozmente negra que desanca na elite urbana, progressista e bem-pensante inglesa, já que estamos claramente em território do povo Labour de Jeremy Corbyn. Também com Timothy Spall, Patricia Clarkson, Cillian Murphy, Bruno Ganz, Emily Mortimer e Cherry Jones. “A Festa” foi escolhido como filme da semana pelo Observador e pode ler a crítica aqui.